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domingo, 14 de agosto de 2016

Blue Monday



Uma manhã de neblina, um dia útil á mais.

Visto o sobretudo cinza e tomo as duas pílulas vermelho-amarelas de Resfenol antes de sair pela porta de casa.

São oito horas em ponto, os dois vira-latas da rua estão dormindo na minha calçada, aonde o sol bate tímido atravessando as folhas do salgueiro da rua.

No começo, o vira-lata número um, negro e soturno como a noite, latia para qualquer um na rua, inclusive á mim.

"Qual é, chapa, eu moro aqui há mais tempo que você".

Agora, ele apenas levanta a cabeça, me encara estático por três ou quatro segundos e volta á dormir.

De alguma forma, parecem farejar meu coração mole pra raça deles.

Lembro de todos os cães de rua que já me seguiram quando lhes fiz um carinho, e de todas as vezes em que o nó se formou na garganta ao ter que mandar que tomassem o caminho de volta.

Saca aquela frase batida de rede social que diz "quanto mais conheço os humanos, mais amo os animais ?". Está gravada em relevo aqui dentro.

Poderia ser algo pior, eu sei.

"Se sua estrela não brilha não tente apagar a minha". "Sua inveja faz minha fama". "Não add sem scrap".

Fico com os animais. Obrigado.

Da esquina vejo o 462 passar batido. Se você nunca sentiu o pesar de um ônibus meio vazio perdido, você não viveu o suficiente.

Encosto o corpo no banco azul metálico. Um cartaz ao meu lado diz "fazemos amarrações, ligue agora". Amarro meu cansaço doente e encosto por ali.

O 202 vem em seguida, e eu me arrasto degraus acima. Bom dia pro motorista, que não responde.

Teria ele respondido se eu tivesse mandado se foder ?! Que dúvida á ser tirada.

Sento lá no fundo, e quando as rodas do Mercedes de 44 lugares atingem a pista central do viaduto, eu vejo á beira do rio um dos famosos três-prédios-fantasmas da cidade sendo demolidos por uma escavadeira, andar por andar.

Ninguém nunca soube porque aqueles prédios residenciais nunca haviam sido habitados. Três quadrados enormes de vinte andares no centro da cidade, servindo de motim pra todo tipo de lenda urbana.

Algumas pessoas disseram que o terreno era arenoso e os prédios iriam afundar com o tempo com o peso das pessoas vivendo lá dentro. Quando criança, isso me parecia factível.

Pra alguns adultos, ainda é.

Das lendas, minha favorita é aquela que diz que houve uma briga judicial entre os donos dos apartamentos e a construtora, ninguém pôde ocupar o imóvel, que foi ocupado por usuários de crack que dormiam nas estruturas abandonadas.

Á certa altura dos fatos, os cracudos começaram á serem assassinados de forma brutal. Ás vezes eram encontrados despedaçados no subsolo, ás vezes com as tripas esparramadas por diversos andares.

Não sei quem inventou isso, mas é fato que por um tempo houve zombie walkers por ali, e que magicamente eles decidiram que era melhor morar na rua depois de um tempo.

Adoraria colocar isso como atração turística no Trip Advisor. Pena que as políticas não permitem.

Pego o trem, coloco os fones de ouvido que magicamente me isolam das lamentações e intrigas cotidianas.

Gosto de observar. De entender o que cada pessoa ali é, o que está sendo o dia dela.

Há uma solidão, um abatimento no olhar de um ou outro.

É engraçado como você enxerga 50 pessoas no mesmo espaço e nenhuma delas sequer se olha. É como se uma invisibilidade estivesse ali, permitindo a co-existência.

Passamos por uma favela improvisada ao lado dos trilhos. Um cara estava botando fogo numa pilha de papelão e outro esfregava os braços por perto pra se aquecer.

Mês passado um cara morreu de frio durante a madrugada, na entrada de uma estação de metrô perto do trabalho.

Em um pequeno raio de três quilômetros em torno de onde ele morreu sozinho e fodido, vivem cerca de 300 mil pessoas.

Que porra. Mais gente e prédios por metro quadrado do que você provavelmente conseguiria contar em toda a sua vida, e seu último momento é enxergar isso enquanto sua vida se esvai á medida que o frio vai lentamente acabando com você.

Na primeira vez que vi um filme sobre náufragos, minha questão essencial era : como alguém que está no meio do oceano morre de sede ?!

Então, eu entendi um dia que o sal concentrado da água acaba com você e piora os efeitos de forma letal.

(Observem como eu seria o primeiro idiota á morrer).

Talvez as coisas sejam assim por aqui.

Somos todos náufragos boiando por aí em meio uns aos outros, esperando que alguém nos apareça e seja nossa terra firme.

Ás vezes, você está lá, sedento por uma conexão humana real. Ás vezes, é só a sua vida que precisa ser salva de um fim trágico.

E aí estamos nós. Espalhando sal na porra toda. No infinito oceano azul.

É...

AD INFINITUMN






























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