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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O silêncio que precede o esporro.




Estava andando pela calçada rumo ao supermercado, observando o céu se dividir em quatro cores distintas enquanto o momento do pôr-do-sol se desenrolava.

Não conseguia parar de pensar em todas as coisas que vinham se acumulando como peças mal encaixadas de tetris em sua mente nos últimos tempos.

Ao entrar, foi passando departamento por departamento no piloto automático até achar a sessão das bebidas.

"Aqui no nosso mercado sua lealdade vale ouro", dizia o banner.

Lealdade.

As coisas desarranjaram quando decidira dar um tempo na relação, e a mágoa provocada por isso na ex namorada deu um choque inesperado por dentro.

Ali, talvez, o jogo tenha aumentado de velocidade e dificuldade, ou talvez simplesmente tenha passado á se odiar. Não era difícil entender o nó existencial : o cara que sempre era naturalmente o protetor mais feroz causando danos extensos á quem mais protegia.

Era como o Greenpeace despejando barris cheios de óleo no Ártico e depois postando no Instagram.

Pegou o vinho (Santa Julia, aquela coisa argentina viciante de baixo custo que sem querer ele felizmente provou meses atrás), foi até o caixa e a funcionária sorriu prontamente lhe dando um boa noite.

Aquele, geralmente, era o único momento aonde saia da caixa de ideias : quando seus olhos encontravam o de outra pessoa e ele se via forçado por esta conexão á voltar pro mundo de fora.

Respondeu sorrindo da melhor forma que pôde, o que provavelmente se traduziu num esgar tímido, mais morno do que café com leite largado, e saiu assim que a rápida operação terminou.

E não sabia bem se fora o choque o acordou, ou se era a base que perdera, que lhe fizera acordar para um mundo inteiramente novo de problemas.

Mas agora, bem, ele tinha todas as coisas do planeta á serem resgatadas pulsando como advertências em vermelho vivo na tela. A carreira estagnada, a violência crescente da cidade, o bem estar dos pais, o desleixo com a própria saúde.

Dizem que quando nascemos a dor é horrível, as primeiras respiradas são as que expandem seus pulmões pela primeira vez, o ouvido tenta desesperadamente se adaptar á pressão atmosférica, os olhos são surrados pela ardência da luz, e o frio, o frio desgraçado do lado de fora de onde você esteve acostumado á estar por tanto tempo.

Lá estava ele, expandindo pulmões em uma nova vida.

Vida.

Vida que parecia sempre uma anedota mal contada. Você acha que tem o controle de tudo, que sabe das coisas ao seu redor, que seus planos vão seguir o destino desde que você faça tudo direitinho, como numa receita de família.

"Suflê de Sucesso - Adicione três colheres de acerto na cobertura, pitadas de realidade á desgosto".

Aí vem aquela força invisível que todos vocês adoram dar um nome diferente, e KABLAM, observe como ela passa o rodo em tudo que você achava bem sólido.

Lá pelos nove anos, ele vira todas as coisas e amizades e histórias que o tio conquistara e disse "uau, um dia quero ser como você, tio". E o tio sorrira, e de tempos em tempos sempre contava sobre o sobrinho dele dizendo aquilo. Ele realmente marcara com aquela frase inocente de criança.

KABLAM !

O tempo passou, anos passaram, e agora ele estava maior, já adolescente, trabalhando, estudando muito. O tio diz pra ele e pro pai : "Eu gostaria que você fosse meu filho, tenho muito orgulho de você, Didi".

Dessa vez, o tio que marcara ele.

KABLAM !

O tempo passa mais vários anos, e que porra, você mal percebe mais. É como areia, literalmente, escorrendo pelos dedos, mas você mal a vê, mal a sente, mal tenta segurá-la.

Agora o tio, antes tão alto e forte, está magro, abatido, mas ainda com o mesmo humor de sempre.

Conta as histórias de Santos, sobre os lugares que conheceu por aí, os parentes que ele tinha e não sabia, as gerações que mal sonhava existirem.

KABLAM !

Lá está você, aos vinte e seis, seus olhos coçam na frente do computador, você sente um cansaço ruim nos ombros, e uma sensação incômoda no peito. Não é mais a criança sonhadora, o moleque trabalhador que dá orgulho, o ouvinte atento e interessado. É só você, numa versão desesperadamente desgastada e sobrevivente.

Tudo parece perfeito pra um niilismo auto-flagelante, então o celular vibra, você lê.

KABLAM !

Seu tio faleceu, depois de lutar contra a doença por meses.

KABLAM !

Uma pessoa muito importante se fora e você estava, sei lá, divagando sobre quão ruim seria pegar o trem lotado.

KABLAM !

Ele era especial, você era especial, mas nada mais é especial, nada mais parece sério, é tudo estranho. Aonde você estava, em qual parte da vida tudo pareceu tão denso e difícil e as conexões se desvaneceram assim, para rotinas virarem os senhores que massacraram seus antepassados, parentes e amigos ?

KABLAM !

Se perdera pensando em tudo isso, e quase foi acertado por um carro, embora na faixa de pedestre.

"Que porra, cara, tá dormindo ?"

"Eu tô na faixa, filho da puta"

"Vá se foder ! *mostra o dedo do meio e arranca embora*"

KABLAM !

A vida segue. E ele escreve esse texto, só porque precisa mesmo escrever um registro disso. Porque isso também tem se perdido.

O tempo passa, nossos amores passam, nossos amados passam. Nós passamos.

Mas qual o legado ? O do tio ainda vive em tantas pessoas, como vive nele, sem morrer por nenhum instante.

E ele, viveria em alguém ? Qual a grandeza de viver ? Qual é o ponto de virada da história que começa como best seller e se encaminha para um romance barato e clichê ?


KABLAM !


(Qual vai ser a sua próxima página, cara ?!)




AD INFINITUMN












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