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sábado, 3 de dezembro de 2016

Manicheistic




Eu lembro da noite de segunda pra terça.

Caiu uma chuva torrencial sobre a cidade, e o barulho da água surrando o telhado me acordou. Eram duas da manhã, e eu estava com uma sensação de alerta no peito.

Ignorei, porque sempre fico assim durante tempestades. Me trazem a sensação de destruição, beleza e caos, mas da destruição pela necessidade de destruir, de repor a ordem atual, de evoluir.

Deitei na cama e fiquei observando o teto que se iluminava á cada lampejo. Senti o vento que vinha pelas frestas da janela. Desejei que permanecesse tudo bem. Dormi.

Não sabia que ao acordar quatro horas depois, eu descobriria ao abrir os olhos que enquanto eu refletia na minha cama, um avião caia e levava consigo a vida de dezenas de pessoas. Pessoas que eu havia visto a pouquíssimos metros de mim com atenção durante duas horas seguidas no domingo.

Ainda lembrava nitidamente do volante careca passando correndo e dando trabalho pra defesa do meu time. Da vontade com que jogavam mesmo sendo um jogo que não valia nada pra eles. De como nossa torcida aplaudiu eles também, pois representariam nosso país em alguns dias.

Não dava pra esquecer. Naquela tarde, nós fomos campeões após 22 anos esperando aquele título. 22 anos que vivi de forma muito intensa, principalmente nas horas mais difíceis. E agora, os rapazes que nos foram um adversário final de se orgulhar, partiram de forma trágica.

O que se seguiu foi que a minha alegria pelo título se escondeu em algum lugar da alma. E um luto se abateu sobre várias pessoas. Eu esperava isso, até. Brasileiro respira futebol, e quedas de avião sempre chocam. Meus círculos sociais diários não deixam por menos.

O que eu não esperava é o que viria á se seguir.

Todos nós temos uma tendência á dividir esse mundo entre bem e mal. A questão é que nossa realidade não permite. São poucas as pessoas e situações que efetivamente são completamente boas ou ruins. Tudo tem dois lados. Todos temos defeitos e atos questionáveis.

Ter uma visão rígida e idealista de justiça e bondade apenas fez com que eu me tornasse um homem quebrado, amargo e negativo em relação á vida e ás pessoas. Sorrir num mundo aonde as piores barbaridades aconteciam o tempo todo era algo impensável pra mim. Me sentia hipócrita, sádico.

Foi só a sabedoria que o tempo, a experiência e as porradas que levamos trazem, que me fez mudar. Entendi que nossa existência é algo muito complexo e que nosso planeta é isso mesmo, um lugar recheado de gente torta (e eu me incluo nisso) que em um momento será boa, no seguinte não. Que uma hora pode ser muito gentil contigo, e no outro pisar gratuitamente no seu calo. Que é muito (muito) mais fácil alguém virar a cara pra ti pelo motivo mais torpe, mas é muito melhor conquistar um irmão (ainda que seja tão difícil).

Se tu levar á ferro e fogo, irá enlouquecer. Não á escolha sobre lidar com isso : ou tu curva quando o vento apertar, ou tu irá rachar no meio. "Be like water, my friend". Palavras do Bruce Lee.

E fico pensando mais ainda nisso nesses tempos de comoção geral. Achei tão inesperado e incrível a atitude dos paisas de Medelín. Um povo que entende bem esta questão da justiça questionável (afinal, viveram vários anos abandonados pelo poder público e dependentes dos seguidos atos de boa vontade de um homem bilionário que ao mesmo tempo era um traficante e genocida impiedoso). E que não teve pudores em lotar as ruas e um estádio em um ato puro e espontâneo de solidariedade.

Aquelas pessoas não tinham nada á ganhar. Simplesmente foram por empatia. Por entender a dor e por querer que nós, brasileiros, de alguma forma sentíssemos conforto emocional nessa hora.

Ou como a mãe do goleiro Danilo, que era a pessoa pra estar mais na fossa e revoltada, e estava por aí, confortando repórteres que caíam no choro ao vivo. Sendo a mãe de muita gente que nunca havia visto.

Por essas e outras, eu larguei mão de estabelecer julgamentos eternos sobre qualquer um. Ou de viver uma política de tolerância zero.

Dizem que Deus escreve por linhas tortas, e é nesses garranchos como o que foi escrito nessa semana que eu entendo frases como "fora do amor não há salvação".

Se agíssemos como egoístas e seguíssemos como se nada tivesse ocorrido, se não ouvíssemos a dor dessas pessoas, se ao menos não parássemos um minuto pra pensar no impacto disso, então não haveria mesmo esperança pra gente como a gente. Ao agir de forma diferente, quebramos a corrente diária. Nadamos contra a maré. Fomos, ao menos por estes dias, mais humanos e preocupados uns com os outros.

Muitos apostariam que um avião iria cair até o fim do ano. Quase ninguém apostaria que milhões de pessoas seriam tão solidárias.

A humanidade não acredita mais nela mesma, mas esses são tempos aonde nossa razão e expectativa é quebrada da forma mais acachapante possível e então reabrimos, ainda que aos poucos dentro da nossa casca endurecida pela incredulidade, um espaço pra fé.

Fé em nós mesmos. Na capacidade que temos de ser algo melhor e maior. De quebrar as correntes, de ser alguma coisa além desses bichos mortais, de ego sensível e noção frágil de auto realização que temos sido e do que nos tornamos especialistas em ser.

Segue o jogo.


AD INFINITUMN







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