• Twitter
  • Facebook
  • Instagram
  • Youtube

sexta-feira, 24 de março de 2017

Morphilia Pt 1




Sentei na beira do cais e observei o mar cristalino que se perdia no horizonte.

Havia um navio antigo de madeira, e ele era parte de uma atração turística naquela região do Caribe.

O ticket de entrada estava em minhas mãos. O sol torrava nossas peles, a brisa com cheiro de peixe, sal e o que mais houvesse naquele oceano era incessante. 

Não demorou muito tempo para o capitão aparecer e convidar todos á bordo. Assim como eu, haviam outros turistas de todas as partes do mundo que fariam parte do passeio. As peles alvas e os olhos claros dos europeus, os sorrisos excitados dos viajantes.

"Um incrível navio pirata do século XVII, venha passear pelas micro-ilhas mais bonitas do mundo!" dizia o estandarte na entrada do porto naquele dia.

Quando entrei, notei como o casco rangia sob meus pés e a madeira apresentava sinais intensos de desgaste. Haviam lascas soltas em várias partes e em outras a madeira era queimada. 

Não nos deixaram descer pra galeria abaixo de nós. Ficaríamos apenas no convés. Uma corda isolava aonde não poderíamos ir.

Achei estranho.

Quando o velho brigue se desprendeu da marina e iniciou navegação, houveram assobios e gritos de exaltação. Sorri, embora meio nervoso.

Um casal de ingleses acenou para mim e pediu para eu tirar uma foto. Quando devolvi o celular, me deram um saquinho com folhas secas.

"É natural daqui, ajuda muito á combater os efeitos do alto mar", me disseram em inglês.

Agradeci, mas guardei rapidamente no bolso. Haviam chineses, também. Com seus chapéus de pescadores e os coletes recheados de gadgets. Tirando foto até da merda das gaivotas que vez ou outra caia sobre alguma parte da embarcação.

Imaginei a apresentação para os parentes e amigos em Xangai.

"Hey, olhem, essa é uma merda de gaivota". E os parentes olhariam maravilhados.

Bem...talvez não.

Todos ali se sentiam Jack Sparrow. Menos eu. Não era afeito á mares e rios, e já me perguntava porque tinha topado a aventura.

Sentei encostado em um barril cheio de sabe-se lá o que. Olhei para a grade de madeira cercada á poucos metros de mim, que protegia o andar inferior. O andar proibido. 

No começo, aquela grade era apenas uma imagem na qual eu me fixava pra esquecer o movimento enjoativo do barco e a tensão do alto mar.

Mas então fui ficando curioso, e com a velha companheira Canon, decidi me aproximar como quem não quer nada quando percebi que toda a tripulação e os turistas estavam entretidos tirando fotos na proa.

Me agachei para passar sob a corda e me apoiei sobre a abertura para visualizar melhor o escuro interior.

O chão tinha um misto de palha e algo viscoso. O cheiro não era bom. Lembrava as carcaças de porcos sendo queimadas no matadouro perto da faculdade. 

Nunca poderia me esquecer daquele cheiro. Era essência de inferno. Impregnava até na mente.

Então algo definitivamente me tirou a paz.

Haviam correntes lá embaixo, presas á grossos ferrolhos nas paredes. Marcas de unhas decoravam elas. Sangue seco adornava uma parte específica do chão. E então uma batida oca vinda lá do fundo aonde eu não podia ver.

Toc...toc...toc. A batida começou no fundo e vinha se aproximando, passo á passo.

O navio chacoalhou mais forte. O céu já não estava tão claro. Uma chuva parecia querer se formar.

Toc...toc.

As batidas foram ficando mais difíceis de se ouvir conforme o vento passou á assobiar mais forte e o saculejo já era mais constante. Já não conseguia ficar agachado, tive que me sentar.

Olhei tenso para a proa. Os turistas colocavam coletes. A tripulação agora parecia dedicada á recolher velas e mudar o rumo da viagem.

Voltei a atenção pra porta do subsolo.

Foi então que senti aquilo bater com tudo no chão sob os meus pés.

TOC!

Me levantei sobressaltado com um grito.

- CACETE !

Um dos marujos ouviu meu grito e me viu na área proibida. Gritou, em ótimo espanhol pra mim :

- La galería no és acessible ! CAPITÁN !!!!

E foi então que o Capitão desceu de sua cabine, claudicando sobre uma perna menor do que a outra. 

Ele não tinha mais o semblante gentil que nos convidou para aquela viagem, mas sim uma cara vermelha e raivosa. Os turistas me encaravam com olhos julgadores, embora parecessem mais preocupados com o céu se tornando negro como a noite.

- Dijo que no podría estar aquí!

Antes que eu pudesse pedir desculpas e me explicar, o navio subitamente começou á inclinar de lado. Rolei e bati com o ombro com força em um banco. Senti a dor atravessar como faca e um ardor insuportável escorrer pelos músculos do braço.

Olhei pra cima e vi uma onda grande se formando. Uma tempestade abissal se formava próxima a nós.

O sentimento de morte me tomou e eu só conseguia pensar nas despedidas que não havia feito e nos meus arrependimentos agora tão urgentes.

Olhei para o andar debaixo uma última vez. Vi olhos me encarando, brilhando. Olhos que transmitiam uma força e uma bestialidade que eu não sabia ignorar.

A voz de lá dentro susurrou :

- Eu posso ver o que há em você. Posso cheirar. Eu sinto o seu medo. Sei o que você é.

Outra inclinação brusca.

Bati minha cabeça com força. Apaguei.


-------------------------------------------------

(Continua)






0 comentários: