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sábado, 25 de março de 2017

Morphilia Pt 2




Acordei em uma cama de hotel.

Meu ombro estava enfaixado e eu não sabia como tinha parado ali.

Era um andar alto, e não tão longe da praia, pude notar pela vista. Havia uma escrivaninha aonde o meu notebook e minhas coisas repousavam.

Quando andava, minha cabeça ainda zumbia. O céu agora estava completamente fechado, ao contrário do cenário paradisíaco de antes.

Liguei a televisão e uma moça do tempo nervosa falava rápido, mas deu para entender a legenda e as imagens interativas.

"Furacão Hernandez atinge nível 5 ao se aproximar da Costa Rica".

Aparentemente, a tempestade que havia nos atingido era o cartão de visitas do gigante. Sempre ouvi que nesses casos as pessoas são retiradas da costa e as estruturas reforçadas, mas não havia nada nas janelas.

O prédio, por outro lado, parecia novo, e ficava ao lado de outros três edifícios de uns vinte andares similares.

Decidi que era melhor avisar a família que estava tudo bem. Em todo o caso, se as janelas quebrassem, eu me abrigaria no corredor ou para as escadas de emergência.

O celular estava sem sinal, e o telefone da recepção não era atendido por ninguém.

Resolvi descer. Os elevadores estavam desligados. Entrei pela porta da escada de emergência.

Algumas luzes apagadas, outras acessas. Desci com cuidado, porque tinha a exata noção de que um tombo naquelas condições me traria complicações pesadas.

Me sentia um idoso com osteoporose largado á própria sorte.

Quando estava chegando no terceiro andar, uma luz piscava intermitente. Um dos degraus estava rachado.

"Mas que merda!"

Ouço vozes vindo. Resolvo esperar.

Silêncio. Um minuto. Dois minutos. Cinco minutos.

Nada.

Quando finalmente vou arriscar um pulo sobre o degrau ferrado, a porta se abre com tudo.

BLAM !

Uma moça morena e com olhar cansado foca em mim. Aponto para meu celular e tento soltar o melhor espanhol que tenho, o que não é muito além de "Hola, Chica!" :

"su teléfono móvil está funcionando?"

Ela olha pro aparelho, olha pra mim. Silêncio de novo.

Talvez ela não tenha me entendido.

Vou falar novamente, e então ela simplesmente vira as costas e desce com pressa pelas escadas.

"Latinos são calorosos". Sempre ouço. Vão se foder.

Pulo o degrau e quando aterrisso, meu ombro dá uma pontada lancinante. Retomo o ar, espero a dor passar e continuo a descida.

Quando finalmente chego na recepção, não há ninguém lá também.

As portas do hotel estão trancadas com tábuas. Os computadores desligados. Pego o telefone para efetuar ligação. Nada.

Pela fresta de uma das portas, vejo as palmeiras da rua sendo surradas pelo vento forte.

O furacão provavelmente estava chegando. E eu tinha parado num hotel abandonado ás pressas. Bem na rota de passeio dele.

Hernandéz vinha ás compras. E eu estava nas gôndolas em destaque.

Então me dá um click. Havia luz no saguão. Então deveria haver no quarto. Quem sabe houvesse internet. Como não tinha pensado nisso, porra ?! Olho o celular. Nada de wi-fi. E a bateria já reclamava o final.

A dor na cabeça e o galo parecem responder com exatidão. Subo as escadas esbaforido. Entro no quarto. Procuro um cabo de rede. Por todas as paredes. Nada.

Olho o celular novamente e...uma rede aparece.

"Hilton Network Guests"

Conecto nela. Ela falha no começo, mas finalmente pega. Mas nada de whatsapp. Ou facebook. Ou email. Apenas o maldito Skype pegava.

Tento conectar. Não lembro a senha. Espera. Lembro sim. Coloco e entro. Minha família não usa o aplicativo, mas um grande amigo está online.

"McCoy - Online".

Puta que pariu ! Obrigado, porra !

Aciono a ligação por dados.

"Hey, mano ! Beleza ? Preciso de um favor..."

"Opa, e aí ! Cara, antes de qualquer coisa, você não sabe aonde estou, vim em um programa de auditório como convidado na platéia, vieram trazer um mágico que está arrastando multidões e..."

"Não, não, show, mas eu tenho algo urgente pra te falar."

"Claro que tem. Você ligou pra dizer que estará trazendo charutos e rum pra dividirmos na volta"

"Não...precis..."

"NÃO ?"

"Porra, é sério. Presta atenção. Avisa a minha família que estou bem mas tô no meio de uma tempestade e posso ficar incomunicável por uns dias"

"Ah, só isso ?! Vamos falar dos charutos. E do rum. E se tiver umas morenas..."

"Não, cara, depois a gente negocia isso."

"Ok. Agora faz o seguinte. Liga na sua tv cucaracha, não sei em que maldito canal passa aí, e veja o que esse cara faz."

"Tá certo, McCoy"

"É sério, mano ! Esse cara é de outro mundo"

"Vou ligar. Promessa de brother."

"Fechou. Teu mano tá te esperando ! E se ver alguém charmoso na platéia, sou eu"

"Vá se foder. Até mais, mano. Espere pelos charutos."

Encerro a ligação. O visor aponta 9%. Decido desligar o celular. E ligar a TV.

Acho o canal brasileiro no número 536. A chamada era o mais sensacionalista possível :

"Milagreiro arrasta multidões no Brasil. Santo ou farsa do entretenimento ?"

Um homem com longa capa e trejeitos pomposos atraía garrafas e espadas supostamente com a força do pensamento. A platéia aplaudia entusiasmada.

"Que porra McCoy, qual a próxima atração de outro mundo, a mulher barbuda ?"

O número se encerra. O apresentador anuncia comerciais no mesmo momento em que ouço uma discussão vindo de algum quarto. Um casal. O homem parece nervoso, a mulher muito mais.

O programa volta e agora a imagem da TV está com ruídos. O vento lá fora mais forte. E a discussão no quarto vizinho parecia não terminar.

O apresentador provoca o mágico. Diz que não viu nada excepcional. O mágico replica. Diz que mostrará algo nunca visto antes.

"Irá tirar um político honesto da cartola", penso eu.

Então a câmera foca nele. No rosto. E lá estão eles. Os mesmos olhos. Cintilando. Ferozes. E parecem olhar diretamente pra mim.

"Tragam o corpo", ele diz  com uma voz calma e confiante.

Um caixão aberto entra no palco e a platéia reage atônita. O apresentador parece congelado.

"Esse...esse é o corpo da atriz Maria Ângela, não ?"

"Sim. A morte desta moça chocou o Brasil esta semana, mas eu estou aqui para provar algo que vocês hão de testemunhar para a história".

Em um vestido branco, ela estava com uma feição plácida. A mãe entrara ao lado. Parecia acabada em tristeza, mas quando olhava pro mágico, transmitia esperança.

"Dizem que a morte é o fim...mas eu vos digo, povo de pouca fé, que ela é apenas o começo..."

Não podia acreditar naquilo. Definitivamente a TV havia atingido o ápice do sensacionalismo. Brincar com pessoas mortas de corpo presente era mesmo algo que nunca havia testemunhado.

"...e eu vos peço...que todos fiquem em pé e digam que acreditam que essa moça irá voltar."

Nem mesmo o apresentador parece acreditar. Olha perdido para a plateia, que aos poucos se levanta e murmura baixo.

"Com mais força, plateia !"

"Eu acredito !"

"Mais alto !"

"Eu acredito !"

Eu não acreditava. Mas havia algo fora do comum na voz do mágico. Uma tensão. Uma certeza. E aquele maldito olhar.

Então pude notar. Meu coração estava disparado. De repente, a possibilidade parecia real.

"GRITEM PARA MIM : EU ACREDITO !"

"EU ACREDITO !"

E então aconteceu. Maria Ângela, a namoradinha do Brasil, morta tão jovem de infarto, levantou de seu caixão.

Houve um silêncio ensurdecedor. O apresentador travado. Os convidados. A platéia. A mãe. Tudo completamente paralisado pelo que acabara de acontecer. Menos o mágico.

"Viva, Maria."

Ela se virou com dificuldade para onde as câmeras estavam. Seus olhos opacos e brancos. Os músculos duros pelo rigor mortis. Um instante de tensão á explodir.

E então uma explosão sonora. BANG !

Um tiro no quarto do meu lado. O casal emudecera.

"PUTA QUE O PARIU !". E então a TV apagou. O vento lá fora apertava e o prédio começou á balançar.

O chão tremeu e um barulho monstruoso de ferro e concreto retorcido invadiu o prédio. A torre do lado começara á cair.

As janelas se quebraram e eu tentei correr pro corredor. O vento me tragou pra fora. O vento me tragou pra longe da minha vida. O vento me jogou em meio ao caos. No Brasil, alguém vivia novamente, e eu estava ali, morrendo.

No último relance, antes de entrar no turbilhão, apaguei.



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Continua.
















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