• Twitter
  • Facebook
  • Instagram
  • Youtube

segunda-feira, 27 de março de 2017

Morphilia Pt 3





Não houveram devaneios.

Apenas um longo e silencioso vazio, que fora quebrado por uma dor terrível de cabeça.

Abri os olhos e tentei levantar. Minhas roupas apresentavam pequenos rasgos e minha pele estava bem ralada nos braços e pernas. Passei a mão na têmpora, bem aonde a cabeça doía, e senti um galo generoso se formando.

A névoa da confusão era forte, mas logo o senso de sobrevivência me fez acordar.

Aonde eu estava ? Quanto tempo havia passado ?

Quando finalmente me sentei e comecei a tatear e olhar ao redor, me dei conta de que aquela paisagem não era estranha, mas tampouco era o Caribe aonde eu estava antes.

Parecia ser um final de tarde chuvosa. Estava numa calçada, larga e comprida, com lojas fechadas ao redor dos dois lados. Não passavam carros.

Uma senhora passou com uma menina do lado. A menina me olhou curiosa, e quando a senhora notou, olhou para minha direção de forma vaga e então perguntou para o que ela estava olhando. A resposta foi um forçado "nada, vó".

Muito prazer, sou um nada. Então era assim socializar parecendo um morador de rua.

Mágico.

Um clique na mente ao pensar essa palavra. Mágico. O homem na televisão. A fera no calabouço. Os olhos que brilhavam de forma descomunal.

Levantei e resolvi andar em busca de uma delegacia ou de direções da embaixada. Precisava me comunicar com o Brasil. Depois, iria atrás de um hospital ou qualquer lugar que pudesse constatar que eu estava OK.

Tão rápido quanto a tempestade que por duas vezes tentou me destroçar, foi a surpresa que tomaria quando me dei conta do que havia acabado de acontecer.

A senhora e a menina haviam falado o maldito português. Com o sotaque de onde eu morava.

Novamente a sensação de estar perdido, a mesma sensação ao estar caído no convés, a mesma sensação ao descer correndo as escadas do hotel e encontrar a mulher que olhou através de mim, a mesma sensação de "as leis da minha física não se encaixam nessa realidade".

Notei que ao fim daquela espécie de calçadão havia uma banca de jornais aberta.

Caminhei o mais rápido que pude - meu joelho esquerdo estralava a cada pisada mais apressada e parei em frente aos jornais expostos do lado de fora.

Dentro, um homem de meia idade, calvo, óculos quadrados. Fazia com atenção uma revista de palavras cruzadas e sua xícara de café fumegava em cima do balcão de balas.

Decidi não incomodar. Provavelmente me espantaria ás vassouradas e me chamando de drogado assim que eu contasse que havia parado ali depois de ter sobrevivido duas vezes á um tal de Hernandez.

O jornal em destaque foi um soco no estômago.

"Folha de São Paulo, 17 de Janeiro de 1987"

Senti minha pressão oscilar, o suor frio subir á testa, o equilíbrio se perdendo.

Era como ser criança e estar perdido no mercado.

A notícia de título era "Sarney, com Ernesto Geisel, passa por grevistas e liga a turbina".

Caralho. CARALHO.

Á despeito de ter um presidente merda, não havia mais nada em conexão com a minha real época. Olhei para a rua adiante e vi os carros quadrados da Volkswagen estacionados.

Procurei o celular no meu bolso e ainda estava desligado. Apertei o botão de ON e torci desesperadamente que ainda houvesse carga.

Dois, três, dez segundos. E então ele liga.

Os nove por cento ainda estão lá, mas não há sinal. Uma moça se aproxima de onde estou.

A maquiagem pesada, a saia quadriculada, uma camisa do The Smiths.

Em tempos normais, eu perguntaria o telefone.

Agora eu só queria que me falasse que eu não estava esquizofrênico.

"Hey, tudo bem ?"

Mas ela passa direto, sem sequer se virar o olhar á mim.

"Malditas roupas rasgadas".

A moça pede uma ficha de orelhão. Agradece com um sorriso e paga com uma nota que não consigo identificar.

"Aqui seu troco, cinco cruzeiros", devolve o senhor das palavras.

Assim que ela sai, decido interpelá-lo. Encosto no balcão e pergunto aonde existe uma delegacia por ali.

Silêncio.

Irritado, dou um tapa no vidro.

Nada.

Plácido e concentrado, o jornaleiro parecia o ser humano mais feliz do mundo ao me ignorar.

Saio andando, desorientado, e após duas quadras, vejo um supermercado aberto. Entro com pressa e decidido á me fazer ser ouvido. Na pior das hipóteses seria preso. E aí poderia falar com alguém responsável.

O mercado era grande, e estava razoavelmente cheio. Uma voz anunciava as promoções e convidava os clientes.

"Venham aproveitar as ofertas do fim do mundo."

O que se seguiu foi apenas a intensificação do efeito obliteração. Nada ouviram, nada viram. Quando eu lhes encostava, embora pudesse senti-los plenamente, eles não podiam. E mesmo quando eu tentava lhes dar um tapa, o efeito era o mesmo que nada.

Desolado, encostei no fundo da seção de bebidas, e encarei os vasilhames de cerveja Antartica se empilhando empoeirados esperando um comprador aparecer.

Uma outra voz no falante voltou á se pronunciar :

"E agora uma notícia triste...328 mortos em passagem de furacão pela América Central"

Minha espinha gelou. Era óbvio que não era o anunciante.

Era a voz do mágico. Era a voz da besta.

"Menos um caro amigo, senhoras e senhores, que viu muitas coisas especiais nesse dia, e há de ver muitas mais antes que o tempo deixe de ser tempo..."

Levanto sobressaltado. O medo e a dor se transformam em raiva mortal. Se aquilo era um manicômio no qual fora trancado, então melhor seria acabar lutando.

Procuro pelos corredores, um a um, aonde está ele com o microfone.

"Eu posso ver o que há em você. Posso cheirar. Posso sentir o seu medo. Eu sei o que você é."

Aquela expressão agora ecoava forte na memória.

Iria sentir o meu ódio, bastardo.

A cada corredor meu coração acelerava, certo de que o encontraria no final. Punhos fechando, a adrenalina correndo veloz pelas veias.

Foi então que, no penúltimo deles, algo prendeu minha atenção na visão periférica.

Um homem alto e esfarrapado, ao menos dois metros de altura, me encarava. Não através de mim, não ao meu lado, não me ignorando. Á mim.

Vestia um capuz sujo, com calças surradas. Seus pés eram descalços e era largo como um touro. Analisei, em total tensão, cada detalhe daquilo que claramente me desafiava.

Haviam ainda cicatrizes profundas nos braços expostos e uma marca horrível de queimadura na face direita.

E o fedor...fedia á putrefação.

Senti o medo tentar voltar e me dominar, mas consegui manter o controle diante da sensação de que aquilo poderia ser o fim.

Ele tomou impulso e com um grito gutural, se lançou em minha direção. Ele era muito mais rápido do que eu poderia imaginar, e minha única reação foi me jogar para o lado.

O homem de negro bateu com um estrondo enorme me uma prateleira de refrigerantes que desmoronou totalmente e gerou gritos dos clientes olhando em nossa direção.

Levantei o mais rápido que consegui e disparei em direção a saída. As portas começaram á ser fechadas por funcionários apressados. Um homem engomado falou em voz anasalada :

"Ninguém sai até eu conferir se nada foi roubado"

"Filho da puta!" pensei eu. "Estão tentando me matar, apenas isso, seu merda".

Passo correndo por ele, que, voilá, nada percebe. Pulo para trás do balcão do açougue. O homem de preto vinha caminhando daquela forma encurvada, como um urso sobre duas patas.

Abriu um sorriso e mostrou dentes afiados e enormes. Uma gargalhada ruidosa saiu pela garganta.

"Mas vejam só, senhoras e senhores, que temos carne fresca no açougue chegando agora mesmo..." - disse a maldita voz de sempre no auto falante.

"SERÁ A DELE, E DEPOIS A SUA, MALDITO!" urrei. Eu nunca havia brigado na vida. E esse era eu, jurando de morte um animal com o dobro do meu tamanho e um cara que ressuscitava mortos e fora aprisionado e isolado num navio pirata.

Notei o facão em cima da mesa de corte. Peguei e corri para dentro da sala de refrigeração, me escondendo entre as peças penduradas.

"Que lugar para morrer".

Um silêncio sepulcral perdurou por alguns segundos, e fora quebrado pelo barulho do vidro quebrando e do balcão do açougue se partindo.

A respiração do homem bestial era pesada e foi se tornando cada vez mais alta. Ele finalmente surgiu na entrada da sala, e caminhando lentamente, fungou a primeira peça pendurada. A lambeu na parte mais gordurosa e soltou um grunhido de satisfação.

"CARNE...SANGUE...QUENTE.......VOCÊ"

Segurei firme com as duas mãos o facão. Olhei para a região do pescoço. Era desprotegida. Se eu usasse o elemento surpresa, poderia matá-lo ou ao menos feri-lo feio o suficiente pra dar o fora dali.

E nunca mais pisar num frigorífico novamente. Ou em países com furacões.

Me esgueirei por trás das peças da direita da forma mais silenciosa possível. Parei, controlando até o ultimo momento da minha respiração, logo atrás de onde ele estava.

Ele virou o rosto para a esquerda e então eu levantei a faca em riste e tentei cravá-la o mais forte e rápido que pude em sua garganta.

O golpe inicialmente o atingiu, mas assim que a faca penetrou os primeiros centímetros da pele rígida, ele se virou e com um murro abissal me acertou em cheio no ombro enfaixado.

Voei de encontro á parede e senti uma dor descomunal percorrer todo o meu lado esquerdo. Era como se algo estivesse dilacerando cada milímetro da minha alma até a pele.

Gritei de dor e as lágrimas verteram. Vi minha clavícula deslocada e meu braço esquerdo quebrado.

Á despeito de toda a vontade de sobreviver, eu estava entregue. A dor incontrolável havia me atingido de forma determinante e eu mal conseguia me apoiar para levantar.

O homem fera se virou para mim, espumando, e retirou a faca do pescoço. Para meu azar, ela havia entrado apenas o suficiente para fazê-lo sangrar, mas não ao ponto de atingir a artéria ou as vias respiratórias.

Aquele era meu fim. Fechei os olhos e pensei em tudo que havia vivido e deixado de viver.

Mas não houve o famoso filme.

A voz agora ecoava ainda mais forte na minha cabeça.

"Eu sei o que você é"

Uma frieza ímpar foi me tomando.

"Eu posso sentir você"

De repente, não havia medo ou desespero diante da morte. Uma calma mortal, um sentimento de controle absoluto.

A fera avançou sobre mim e se ajoelhou sobre minhas pernas. Colocou uma das mãos sobre meu pescoço e com um sorriso sádico, começou a apertá-lo devagar.

A voz do mágico, da fera do navio, aquela voz, começou á soar em uníssono com a minha, que agora simplesmente fluía em um idioma fora do meu controle.

"Veit ég að ég hékk..."

A imagem de um homem de chapéu com um corvo no ombro e um cajado perpassa minha visão.

"vindga meiði á"

Vejo runas. Ouço um cântico tão belo, que nunca ouvira antes.

"nætur allar níu"

Sinto uma força tomar conta de mim. Um calor como de mil sóis me preenche.

"geiri undaður"

E então um guerreiro. Barbado, em trajes nórdicos de guerra. Um machado enorme e entalhado pende de sua mão direita. Ele olha para mim. Seu rosto é marcado pela guerra. Mas tudo que sinto é sua sabedoria e coragem.

"og gefinn Óðni"

Ele me estende a mão. E sinto como se nós fossemos realmente apenas um. Passado, presente e futuro.

"sjálfur sjálfum mér!"

Respiro fundo e sinto a presença em meu coração. O homem fera percebe algo em meus olhos. Algo que brilha.

Com meu braço direito, aquilo que ainda me resta, torço seu pulso esquerdo e o jogo para a minha direita. Ágil como eu nunca fora, subo em suas costas e jogo meu peso contra seu ombro, puxando o braço da fera para trás.

O som de osso estalando é acompanhado pelo seu urro.

Glorioso.

"Agora estamos quites, filho da puta"

A fera se contorce e se levanta, enfurecida. Noto o facão sujo aos meus pés.

No tempo exato em que o pego, ela se lança sobre mim, e eu encaixo, com uma precisão inexplicável, a lâmina perfeitamente em seu diafragma.

Seu grito de dor surra meus ouvidos, o sangue respinga em meu rosto. Um sorriso cruza meus lábios. 

De repente, eu parecia ter nascido para aquilo.

Para a batalha.

A fera finalmente silencia. Com dificuldade, jogo seu corpo para o lado.

Ouço gritos lá fora. O vento, forte, começa a destelhar o mercado.

Olho para o turbilhão se aproximando. Fecho os olhos. Ele me encontra.


----------------------


7h da manhã. O despertador toca. Acordo com uma sensação inexplicável.

Tudo fora um sonho.

Não fora ?

-----------------------------



AD INFINITUMN





















1 comentários:

Unknown disse...

Morphilia sensacional!
Vc escrevendo cada vez melhor! Gosto muito de ler teus textos por aqui, parabéns!