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segunda-feira, 3 de abril de 2017

Adonis, o Corcunda.

Esse é o primeiro capítulo de um novo livro. Leia se quiser, mas se ler, faça o favor de dar sua opinião nos comentários. Obrigado e volte sempre.

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Adonis, o Corcunda




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Osasco, 2004.

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A garoa fina caía intermitente á três dias. Embora o inverno costumasse ser seco, aquele junho era descomunal. Por mais de uma vez chovera o suficiente pra alagar a rua em frente á escola e causar transtornos na hora da saída.

- 'A melhor escola da região', eles diziam. 'Lá você vai estar com os melhores', eles diziam. Olha pra gente, cara. - César chutou uma garrafa vazia de refrigerante rumo ao portão.

A adolescência o estava transformando do garoto gordinho e tímido da infância em alguém com estrutura boa o suficiente pra jogar em qualquer time de futebol americano. Começara á perceber o respeito que isso impunha, mas ainda era frágil como um papel na auto estima. E a timidez continuava lá, como o saco de pedras que sempre fora.

- Mas aqui é muito bom, sim. Você acha que as outras escolas da cidade são melhores ? Mataram um moleque na porta do Pestana, seu gordo. - replicou McCoy.

- Gordo é o cacete!

Eram melhores amigos desde os nove anos. No começo da amizade, McCoy era um novato isolado no fundo da sala da terceira série. 

Passava os primeiros dias desenhando na carteira e preenchendo cadernos de caligrafia.

César, o diplomata dos inválidos, decidira abordá-lo. Não da melhor forma, diga-se de passagem. Ele não era bom no tato social.

"Que letra feia da porra, cara!"

"Sai fora daqui, cacete!"

"Porra, mas tua letra é muita feia! Feia como o demônio!"

"Feia é tua pança!"

"Olha o respeito, mané. Qual teu nome ?"

"Que te importa ?"

"Meu nome é César. Prazer."

E foi estendendo a mão e com esse digno diálogo entre dois cavalheiros que a amizade começara.

Agora, seis anos depois e muitas salas de aulas compartilhadas, muita coisa mudara. McCoy saíra do isolado para um moleque relativamente popular, que tinha como grande conquista até aquele momento o prêmio de pessoa mais legal do ensino fundamental, entregue em mãos no dia da formatura.

Engraçado o tipo de coisa que tem valor aos catorze.

Já César, o diplomata, afunilara por um caminho meio tortuoso entre rejeições amorosas, trocas de socos esporádicas e o título de melhor aluno da sala por três anos seguidos.

O problema é que, bem, nas escolas públicas de Osasco, ser o melhor aluno pouco importa. É uma espécie de honra desonrada. Você não come ninguém, não conquista respeito e nem mesmo a escola dá muita atenção.

Mas nem tudo era perdido : o grande prêmio de ser muito bom nas aulas era que na hora da reunião de pais, seu lombo e seus ouvidos eram poupados. 

César sempre jurava que o chinelo Rider de seus pais tinham propriedades de tortura física e psicológica desenvolvidos pela Inquisição Espanhola.

Ninguém acreditava e todos riam, como sempre era com ele, mas um dia ele apareceu com uma bela marca de chinelada na perna, e então, a história ficou muito verossímil dentre os povos da oitava série.

"Agora vocês acreditam em mim, seus merdas ?!" disse, com um orgulho indefectível típico de um sobrevivente de guerra.

A caminhada dos dois atravessou o portão principal da escola e adentrou o pátio descoberto. O chão era marcado por pequenas pedras e concreto sujo. César vestia sua camisa xadrez inseparável e a velha calça jeans rasgada intencionalmente nos joelhos. McCoy tinha o cabelo fino até os ombros, um projeto de barba no queixo, e um all star igualmente inseparável com várias inscrições á caneta e a miniatura de um peixe - o peixemorto - amarrado no cadarço. Era pouca coisa menor do que o amigo, mas definitivamente mais magro.

"Grunge is not dead", é o que ambos viviam falando pra quem questionava o estilo.

Do lado direito do pátio ficavam as duas quadras, nos quais disputavam todas as quarta feiras de chuva um esporte recém inventado pelos dois, de muito sucesso, chamado Toscobol.

O Toscobol nada mais era do que o popular futebol, todavia, jogado numa quadra com vastas poças d'água, uma bola em más condições e com todos jogadores péssimos no trato com a pelota.

Ficaram famosos os lances nos quais McCoy, ao tentar efetuar um chute de efeito na frente de uma bela fêmea, escorregou, caiu - não para a frente, não para trás, mas exatamente de lado - e se espatifou como uma melancia.

Também soaram pelos cantos mais ínfimos daquele lugar o dia em que César entrou com bola e tudo no gol, mas na emoção do momento acabou se enrolando na rede e não conseguiu mais se soltar.

Á despeito dos esforços homéricos de seus amigos, foi preciso chamar o zelador Adonis, um senhor de 86 anos, já mais pra lá do que pra cá, que com muito mal humor cortou um pedaço da rede com um alicate e o soltou, na frente de uma plateia extasiada com a desgraça do garoto.

O chamavam de Adonis, o Corcunda, porque ele andava completamente curvado e te encarava sempre olhando por cima dos óculos. Era marido da inspetora mais antiga da rede de ensino da cidade (Maria Antonieta, que César chamava carinhosamente de Bruxa de Blair), uma senhora que tinha como amável característica bater nos alunos com a corrente do portão quando alguém tentava cabular aula.

E é exatamente Adonis, o Corcunda, o Cortador de Redes, o Zelador do INSS, o Domador de Bruxas, que teria a ver diretamente com os fatos que aconteceriam a seguir - e que os aspirantes á Kurt Cobain mal podiam imaginar.


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2 comentários:

Unknown disse...

Sempre, sempre master!

Oissac disse...

Quero ver onde isso vai dar!