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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vício





"Procura a satisfação de veres morrer os teus vícios antes de ti." (Sêneca)





Era um domingo de manhã.Eu saí correndo de casa, porque estava atrasado pro meu compromisso.
Quase esbarrei num senhor de barba crescida, fala enrolada e cheirando estranho.

Bêbado, pensei.

Ele perguntou se eu não tinha nada pra comer.Eu disse que não.Na verdade eu não tinha era tempo, mas a cultura de dizer "não" a pessoa que claramente aparenta problemas com álcool fez com que não surgisse nenhum peso na minha consciência.

Cultura errada ? Talvez.

Desci para o ponto de ônibus.Havia um homem sentado, camisa branca, boné, óculos.Um cidadão comum.

O ônibus demorou para vir, e ele puxou papo.

- Tá vendo aquele cara do outro lado da rua ?

Olhei para o outro lado.Além dos carros passando, um bar e um senhor dentro dele.Já havia visto aquele senhor.Duas ou três vezes.Em uma delas, eu ajudei a sinalizar para uma viatura socorrer ele, já que o mesmo estava deitado no banco do mesmo ponto, ás onze da noite, aparentemente mal das pernas.

- Aquele senhor ali tá acabado com a bebida - prosseguiu o cara do boné, sem qualquer cerimônia - E eu conheço ele do tempo em que andava bom.Era técnico de refrigeração, e olha só como está agora...


Quando perguntei qual era o nome dele e aonde ele morava, recebi um "não sei", mas constatei que o mesmo senhor era famoso no meu bairro.Várias pessoas pareciam se preocupar com ele ao passar perto do bar, e eu presenciei outro dia mesmo uma senhora lhe ajudar com roupas.

Minha atenção só foi desviada quando o outro senhor, aquele da comida, apareceu com uma sacola cheia de bolachas e um rapaz da minha idade do lado dele.

O rapaz o ajudava, e o velho sorria com os dentes que lhe sobrara na boca.

Não estava bêbado.Estava definitivamente fora do considerado saudável psicologicamente, mas não parecia bêbado.Parecia feliz, e honestamente, bondoso.Só deslocado de sua saúde mental...e eu deslocado da minha capacidade de enxergar além das aparências.

O velho da comida pegou o mesmo ônibus que eu.O velho do bar continuou lá.O jovem salvador foi embora pra casa, com a minha aprovação e, sem saber, tendo salvo um pouco da minha fé também.

E no caminho, eu me coloquei a pensar.

André * era um amigo meu dos tempos de Senai.Altura mediana, magro.Adorava um rock.Se vestia como tal.Tinha talento incrível pra área de mecânica, ao contrário de mim.Bom pra ele, azar meu, pois mecânica era exatamente o nosso curso.

*Nome fictício, é, melhor assim.

Pegamos amizade rápido pela afinidade musical.Ele desde cedo demonstrava certa rebeldia.Eu desde cedo demonstrava o meu lado protetor.

O lado dele foi mais forte.

No segundo semestre do curso, começou a faltar direto.Os professores passaram a cochichar demais, se reunir demais.Havia algo estranho.Quase ninguém percebeu, mas nós, sonhadores e projetos de heróis, estamos sempre alertas pra alterações na atmosfera do ambiente.

Ele reapareceu, mas não era exatamente o André.

Parecia aéreo, falando bobagens sem nexo.Percebi que alguns ficavam com receio de ver reações inesperadas dele.

André era um dependente químico.Estava na cara de todos que já sabiam disso.

Eu só não sabia do quê.E soube numa tarde fria e estranha.

Foi quando eu olhei pra trás, lá na última cadeira, aonde ele sentava, e vi ele com um pano na boca, como se estivesse inalando algo.O pano emanava um forte cheiro de óleo de lubrificação.

E todos na sala riam, e o professor dava aula.Alertei, avisei : "Cara, olha, ele tá se drogando!".

Para um garoto de 15, aquilo era absurdo.Não, Diego.Pra você, idealista, com 15, aquilo era um absurdo.

Mas todos olhavam e achavam normal.Parecia pesadelo.Mas não era.

Discretamente avisei o professor, que parecia preocupado em manter as coisas funcionando primeiro e depois sim, ajudar ele.Estava preocupado também, mas não na medida necessária.

Lembro que o professor Nivaldo, da tornearia, área que o André era fera, foi o que mais se esforçou pra tentar salvar ele.

Não conseguiu.Eu também não.

Perdi um amigo, perderam um aluno, o mundo perdeu um gênio da oficina e ganhou um drogado sem história a mais nas ruas.

Sim, porque foi a última notícia que recebi dele, á um ano e três meses atrás.Viram ele na entrada de uma estação de trem.Olhar vago.Roupa surrada.André, 17 anos.

E uma ferida a mais aqui que eu faço questão de apertar quando começo a achar que minha vida é ruim.Que aperto pra lembrar que preciso fazer MAIS pelo mundo.

André das piadas de humor negro e que queria comprar uma guitarra.O homem do bar, que o bairro todo conhecia como um homem bom e inteligente no passado.

Eles e mais alguns milhares aí.

Destruídos pelo vício.

E o mundo conta até dez - Sonne, Rammstein



AD INFINITUM

1 comentários:

Unknown disse...

Existem muitos vícios espalhados por aí.. Os que envolvem narcóticos, alcool e coisas tais são, de longe, os mais reparados. São os mais comentados. E as pessoas, em geral (digo "em geral", mas, graças a Deus, sei que não são todas..), tratam o dependente como um objeto inanimado qualquer. Sem sonhos, sem desejos, sem pensamentos, sem medos, sem sentimentos. Existem, sim, aqueles que entram nessa vida por pura babaquisse. Pra serem o 'cara legal', o 'popular', o 'fodão' da turma. Pra não ser um 'careta' qualquer. Idiotas, estes. Mas, e os outros? E aqueles que entraram nessa por falta de informação? E aqueles que QUEREM sair, mas não conseguem? Por falta de ajuda, por preconceito, ou por escassez de força física, ou até mesmo psicológica... sei lá!
O pré-conceito, na maioria esmagadora das vezes, é o culpado. O culpado por não ajudarmos, por simplesmente não estendermos a mão àquele que tá caído, ou passarmos virando a cara, fingindo que não estamos vendo. Isso magoa. Magoa, pq são humanos que estão ali. Não nas condições ideais que um humano deveria viver. Mas não deixam de ser humanos.

Existem tantos outros tipos de vícios por aí, que as pessoas nem mesmo notam.. O preconceito (conceito pré-estabelecido em nossa mente sobre algo ou alguém, sem antes nos informarmos pra saber se é o retrato da verdade) é o maior dos vícios. O preconceito é feio, é infiel, maltrata os julgados e destrói a alma dos julgadores. Entretanto, é exercido por quase todo ser vivente que há sob a terra. Tem, também, a soberba. Esse vício de acharmos que somos melhores que os outros. Também é feio. E ruim pra ambas as partes. Humilha o julgado e ilude o julgador. Quando, fim de contas, somos todos irmãos. Soberba é, sim, pura ilusão.
E tem mais vícios por aí.
Só que eles já estão tão diluídos na hipócrita sociedade que a gente nem mesmo repara, não é?
Imagina se tratássemos os viciados em preconceito e soberba da mesma maneira que se tratam, hoje, os viciados em drogas?

O que seria desse mundo?

O problema é que, nem sempre, as mesmas portas se abrem pra todos.

Mas, e daí? Isso não importa, né?
O mundo tá tão bonito do jeito que tá...

...Hm... Existe um vício chamado ironia, também.

Gostei do post. To com saudade =/