• Twitter
  • Facebook
  • Instagram
  • Youtube

sábado, 13 de agosto de 2011

Lanterna dos Afogados




"Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar"


O fim de tarde parece me engolir.Termino a Dutra e pego á direita, entro na marginal.Carros, caminhões, o que houver sobre rodas, todos engarrafados.

Meus movimentos denotam nervosismo.

"Eu preciso chegar logo", penso eu.

Mas a cidade está tão distante.O céu se mistura entre um azul escuro com um amarelo manga.O rio, poluído e morto, corre devagar sem fazer barulho.Estranhamente, não há buzinaço ou ronco de motores.Como se todos estivessem fazendo parte de um rito urbano estranho.

Explico ao amigo motorista, de outro estado, cada trecho.O nome de um estádio.As luzes mais fortes num canteiro.A ponte que leva a algum lugar.

Percebo que, involuntariamente, eu me distraí da própria tensão.

Encosto a cabeça e cumprimento com o olhar cada nuvem lá no céu.Como um pedaço de algodão perdido de um algodão ainda maior, que cairia sobre nossas cabeças em forma de chuva.

Chuva.

Eu não me lembro da última vez que choveu.Não me lembro da última vez que senti meu peito falhar em contato com aquela sensação fria e ao mesmo tempo, maravilhosa.Não me lembro a última vez que me permiti tal coisa.

A rádio começa a tocar Suspicious Minds, do Rei.O amigo comenta que Elvis é o melhor.Digo que gosto, mas prefiro Beatles.Me lembro de ouvir twist and shout com amigos em um pátio qualquer.

O que será que eles estão fazendo agora ? Também vendo pedaços de algodão no céu ? Também ansiosos por chegar a algum lugar ? Para ver alguém ?

Que bom é ter um amigo pra compartilhar algo.Até mesmo compartilhar uma sensação ruim nos faz sentir melhores.

O chão rachado se expande em faixas sinalizadas, eu olho pra direita e vejo a lendária estação dos contos do blog, dos pensamentos do passado.

Entre um segundo e outro, a voz do GPS quebra a linha de pensamento, e eu repito : é só seguir em frente, este GPS é demente.

O amigo concorda.

A viagem continua, e de repente já é escuro.O contraste das luzes contra um firmamento de estrelas escondidas, o gosto amargo do cansaço.A noite chegou.

Entendo que não vou chegar a tempo.Envio uma mensagem pedindo desculpas pelo imprevisto.Não há mais nada a se fazer.

Talvez eu trocasse todas as horas do dia pelo calor do abraço dela.Talvez eu trocasse o meu salário por um "eu te amo" bem falado.

Mas naquela noite, foi como se a cidade dizesse : esta noite você é meu.Não lhe deixarei ir a lugar algum.

E me envolvendo, em sua brisa suave, em seus arranha céus imponentes, em seus carros possantes, em minhas memórias tão entranhadas em suas ruas e estações, eu me declaro entregue.

Meu caro amigo me deixa em um ponto na rodovia, perto de meu bairro.Agradeço a carona.Um caminhão passa em alta velocidade e o vento que sopra me atinge como um cumprimento de boas vindas.

Desço as escadas, me encontro na avenida.Dentro de um ônibus, rostos e mais rostos.Um olhar perdido no nada.Uma cara fechada.Olhos fechados.Ninguém se fala.Ninguém sorri.

Não pareço o único cansado, afinal.

Não me sinto bem por isso, oh, não.

Meu smartphone reclama que a bateria está no fim.Eu ignoro.Ando por ali como quem andou há quatro anos atrás.Como quem, há quatro anos, já havia cruzado com um governador, participado de conversas filosóficas com amigos, visto enchentes, arrumado computadores, e tantas quantas mais coisas lhe vinham na cabeça em alta e boa resolução mental.

Uma criança sai de um posto de gasolina com uma sacola na mão e sorri pra mim.Eu sorrio automaticamente e me pergunto como elas conseguem ser assim.Não espontâneas mas...sorridentes, e...sem medo, sem receio, sem bloqueio.Como eu.Como as pessoas do ônibus.

A experiência parece embrutecer.

Santo Deus.

A vontade aperta e eu decido ligar.Não terei um abraço, mas bem, quem sabe um boa noite.A ligação não se completa.Eu guardo o smartphone no bolso e jogo a toalha por hoje.

Então, como se brigasse por atenção, a vida me dá um pequeno agrado.Pingos caem do céu.Um, dois, vinte, oito mil.Vai começar a chover.Eu estou ainda há dez minutos de casa.

Graças a Deus.Uma bela desculpa pra tomar chuva.

Sorrio e espero parado na calçada ela vir.Mas ela para.

Oh, shit.

Dou uma risada sozinho na rua como um daqueles loucos pintores de praça.Que prazer que há em cada desejo ! (Mesmo nos quase satisfeitos.)

Eu caminho até a minha residência, e mais uns seis ou sete olhares, femininos, masculinos, infantis, me seguem neste tempo.Me fitam, inquisidores.Sei que não estou com a roupa rasgada nem andando de um jeito estranho.

Sei que quando você está ligado á algo maior, você atrai outros corações em busca disso também.É natural, magnético, inevitável.

Entro em casa, e meu pai desabafa que minha mãe desconfia de sua fidelidade.A internet não funciona há dois dias por incompetência da operadora.Penso e sinto : que clima de faroeste está por aqui, cowboy.

Não muito atrativo pra uma casa de família.Mas bem, eu não estou pra Billy the Kid.Sinto uma respiração na minha canela.

A cachorra balança o rabo e abre a boca olhando pra cima.Levanta a patinha e abaixa a cabeça.

Oh, vida.

Outra de suas surpresas agradáveis.

Abaixo e abraço como ela gosta de ser abraçada.Bichos interessantes os cachorros.Sem ciúmes, sem medos, sem dúvidas, sem razões maiores para ser ou fazer.

Apenas são.

Parecem tão acima de nós.

Deito na cama de meus pais.

Meu velho inicia uma ligação, e suspira de decepção.

"Um mês ? No mínimo ? Não é possível !"

Minha avó vai ficar internada ao menos mais um mês no hospital.Meu pensamento vai de encontro á ela.

"Vó, aguenta.Eu amo você"

Sinto pena de meu pai, cansado, trabalhado, nervoso, e agora essa.Sinto pena de minha mãe, enciúmada, perdida, se sentindo desvalorizada á toa.

Outra respiração na canela.A cachorra subiu na cama e está pedindo carinho.

Dou outro sorriso.

Bichinho esperto pra cortar tristeza.

Sinto vontade de compartilhar algo.Envio um sms para ela.

"Baby, minha vó vai ficar mais um mês.Sorte a minha de ter uma garota esperta tão perto".

Penso comigo mesmo se não sou meloso.Ou se amo demais.

Penso no minuto seguinte que não vou chegar a conclusão nenhuma.

Desisto de pensar.

Então, como teco-tecos bicando a janela, a chuva chega.Forte, poderosa, barulhenta.

É, provavelmente, o único barulho que soa como sinfonia e nos faz sentir prazer.

Sinto uma vontade inexplicável e inexorável de ir lá fora e compartilhar dela.Lembro da cidade que me seduzia nos terraços da Fieo em 2009.

Apenas abro a janela e me deixo molhar um pouco.A chuva pára novamente.

Obrigado, Deus.

Respiro fundo, sem me enxugar, venho pro quarto, e digito este post ás vinte e uma e quarenta.

Eu vou levantar e tomar um banho frio pra completar.Vou escrever uma carta para minha mãe dando uma força e pedindo pra parar com essas coisas.Talvez eu escreva bem.Se você leu até aqui e não sentiu preguiça em muitas partes, talvez escreva.

Estou sem dinheiro sobrando, sem internet, sem pais em harmonia, sem avó em casa, sem a garota.Sem uma porra de garrafa de vinho pra bancar o bêbado legal.

Mas eu ainda tenho...isso.Isso que se transmite e traduz através da cidade.Da brisa.Da chuva.Da cachorra.

Da esperança.

Não sei se é Deus.Não sei se sou eu.

Mas esta noite, a cidade me conquistou.

É hora de ir.

AD INFINITUM

0 comentários: