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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

2011 em uma palavra.



O céu era um misto de cinza e preto. Ventava frio. Arranha céus preenchiam toda a avenida.

Por todo o lugar ecoava a Cavalgada das Valquírias, de Wagner.

As pessoas na calçada passavam apressadas, em roupas sóbrias e com um medo estranho no olhar.

Passou em meio aos carros e se aproximou de uma banca de jornal.

30 de Dezembro de 2026."Retrospectiva do Ano", era o título de uma revista.

O senhor de óculos meia-lua o encarou de cabeça baixa.

"É um dia tenso para todos nós, não, senhor ?"

Não sabia se era grave ou não.Não sabia como fora parar ali.Estava sonhando ? 

Começou a folhar as páginas.Uma praça destruída figurava em meio a dezenas de mortos.

"Atentado na abertura das comemorações do dia 7 de Setembro vitimou o governador do estado do Rio de Janeiro.O mesmo foi orquestrado pela organização terrorista VeraCruz, que diz lutar contra a corrupção do país. Ainda entre os mortos, o secretário de Turismo, Sr.Arnaldo Paglia, e o Ministro dos Esportes, Sr.Américo Silva.

Todos absolvidos em recentes CPIs. A violência não resolve nada.Mas os terroristas do Veracruz não parecem ter aprendido a lição.Certamente, uma organização que será esmagada em breve pelo eficiente governo Neves."

Terroristas no Brasil ? Matando corruptos ?

Um novo trovão ecoou em meio aos violinos.

"Você também está ouvindo esta música ?", perguntou ao senhor.

"Todos ouvem senhor.É a música da liberdade.O senhor me ensinou a ouvi-la a muito tempo, se esqueceu ?". Um sorriso se formou em sua face e ele piscou.

A música aumentou de intensidade e uma tenor feminina agora cantava.

Passou mais algumas páginas.

"Eleito pela maioria insatisfeita com o governo terrivelmente corrupto do PT, Aécio demonstrou uma política nacionalista forte e instaurou o orgulho brasileiro novamente. A corrupção foi praticamente banida do governo, embora guerrilhas e jornalistas de esquerda acusem, de forma febril, que vivemos em uma nova ditadura.

Restrições de movimento após as 22 horas e pena de morte são duas medidas também criticadas, mas que se mostraram eficientes no controle de segurança da sociedade.

Todas as acusações de desvio de dinheiro e abuso de poder foram imediatamente recusadas pelo Tribunal de Justiça por falta de provas."

A foto que ilustrava a página era a de um homem grisalho, queixo levantado, olhar desafiador.Embaixo, em uma foto menor, um manifestante de rosto ensanguentado segurava um cartaz com rostos de pessoas desaparecidas.Mas a revista a colocara de uma forma jocosa.

Se sentira inquieto.

Saiu da banca.Estava na Avenida Paulista, certamente.As pessoas ainda passavam apressadas e com expressões fechadas.Uma loja de televisores acumulava alguns curiosos na vitrine.

A música agora estava em um ritmo que lhe causava adrenalina.Se aproximou e viu na televisão a imagem de um ditador oriental, em meio a um desfile militar.A mensagem de rodapé no programa jornalístico dizia :

"Coréia do Norte acusa OTAN por assassinato de ditador.Guerra nuclear iminente nas próximas horas."

Aquilo definitivamente deveria ser um sonho.Mas era tão...real.Tudo.As pessoas, as coisas, as notícias.Tudo tão...palpável.

A música agora era outra.

Ainda Wagner, mas a introdução de Tristão e Isolda.E embora a música parecesse ecoar por todo o lugar, só ele parecia se atentar a mesma.

Um celular em seu sobretudo tocou. Atendeu.

"Está seguro, Navarro ?"

"Navarro ?"

"Entendo.Ligarei depois"

"Não ! Espere ! Não me chamo Navarro."

A voz masculina do outro lado da linha riu  e disse :

"Quer que eu lhe chame pelo nome verdadeiro na linha aqui de casa ?"

Então, pensou que se aquilo era uma realidade diferente, poderia ser alguém diferente também.

"Não, tudo bem.Posso falar agora."

"Precisamos da informação de quando o prefeito irá passar pela Avenida do Estado amanhã.E de quantos seguranças estarão por perto."

"Prefeito...?"

Riu automaticamente.Aquilo deveria ser piada.

"Bem, ele será um prefeito até amanhã, não ? Depois disso será um presunto corrupto a menos em nosso país.Se os coreanos não explodirem metade do planeta antes.

Veja bem, Navarro, eu tenho que desligar agora.Quero passar a virada com minha família e comemorar este ano maravilhoso de muitas vitórias e menos porcos no poder.Me ligue quando tiver a informação, o mais breve possível.

E ah...eu sei, hoje fazem dez anos.Eu sinto muito.Até mais."

A música tinha tons melancólicos agora.Colocou o celular no bolso.

Mexeu nos bolsos e encontrou um crachá.

Seu coração saltou.

"Ministério da Economia e Desenvolvimento.

Diego Freitas Palomo - 37 anos  - O+
Registro de Segurança Unficada Nacional : 467366561
Cargo : Sub-Secretário de Economia Militar
Nível de Acesso B12"

Agora a música havia se convertido para um adagio.

Um desespero sufocante tomou conta de seu peito.O que era aquilo ? Como...o que era aquela...situação ?

Andou mais uns metros, de cabeça baixa.Olhou para a rua.Carros com design arrojado, equipamentos tecnológicos em barracas de gente com o olhar perdido.Se aproximou de uma delas.Uma família, formada por um casal de certa idade e uma criança sentavam-se atrás dela.

" Temos alvará senhor, por favor, não nos denuncie".Era um senhor de traços indígenas. A mulher abraçou a criança e o olhou com raiva no olhar.

"Não, eu...não..."

Um homem equipado, com um sobretudo azul marinho e várias proteções, além de um capacete, se aproximou ao seu lado.O olhar de horror agora era escancarado na cara do casal, e o homem se ajoelhou no chão.A música que tocava agora era Lacrimosa, de Mozart.

"Como podem importunar uma autoridade ? Imigrantes imundos !", berrou, subitamente, o que parecia ser um guarda.

Levantou uma espécie de bastão elétrico e tentou golpear o pobre senhor.

Imediatamente uma cólera subiu por suas entranhas, e ele se jogou contra o guarda.

"NÃO !".

Os dois rolaram para o meio da avenida, e um carro freou bruscamente.O homem era alto, cerca de dois metros, e consideravelmente forte.Sua surpresa logo se transformou em violência, e agora ele tentava alcançar algo que parecia uma arma.

Navarro (Ou Diego, o que importava agora ?) se apressou em pegar o bastão elétrico.Haviam pessoas ao seu redor agora.Conseguiu pegar o bastão, mas o guarda foi mais rápido e apertou e torceu seu punho.Sentiu um estalo agudo e então uma dor lancinante percorreu todo o seu braço direito.

Gritou de dor.

O guarda novamente tentou pegar a arma na cintura, quando uma moça loira, de cabelos lisos e estatura mediana o chutou na fronte.Por um minuto, seu olhar azul claro cruzou com o dele.

Pela primeira vez em sabe se lá quantos minutos estava naquele lugar, sentiu algo agradável.Então o som de sirenes e apitos ecoou perto, e as pessoas começaram a correr.

Ela disse, breve :

"Eu não sei o quão idiota você consegue ser, mas não seja de achar que sua posição no governo vai te salvar de problemas com estes merdas.E não venha atrás de mim.Não quero problemas por conta de um burocrata que não sabe por quem luta.

Agora corra !"

Ela se levantou e correu na direção da entrada do metrô, em meio a algumas pessoas.O guarda estava desacordado.Pegou o bastão elétrico e guardou no sobretudo, se levantou e saiu correndo na direção oposta.

Após dois quarteirões, havia na entrada de um prédio um senhor de idade e vestido com roupas de hotel.

"Ah, não, mais um senhor de idade.", pensou consigo mesmo.

"Senhor, por aqui !", o mesmo lhe pediu.

Agora não confiava em mais ninguém.Mas olhou pra trás e percebeu um grupo de seis nada adoráveis guardas com rottweilers do tamanho de um homem médio vindo pelo calçada.

"É aqui que moro ?"

O senhor abriu um sorriso bondoso e disse : "A seis grandes anos, senhor".

Entrou em um hall grande, com ornamentos dourados e lustres.Pessoas em roupas luxuosas se sentavam nas poltronas da recepção.

"Aqui está sua chave.Décimo sexto andar, não se esqueça.".O velho entregou a chave com mais um sorriso e um tapa ligeiro nas costas.O tapa, por mais leve que fosse, lhe fez sentir a onda de dor cobrir novamente o braço direito.

"Obrigado".

Pegou um elevador e apertou o número 16.

Agora a música novamente havia mudado.Lux aeterna.

As portas se abriram no quarto andar.Uma mulher ruiva e de aparentes quarenta anos, com vestido de pele, entrou no elevador.

"Boa tarde, ministro.Ou ainda te chamo por sub, Palomo ?"

O tom da voz foi provocativo.Ele simplesmente não respondeu.Estava suando, a dor agora era insuportável e ele já parecia estar certo de que aquela era agora a sua realidade.Precisava arranjar o menor número de problemas possíveis além dos que aquele Diego parecia estar envolvido.

O elevador parou no décimo sexto andar e ela, subitamente, passou a mão em suas partes íntimas.

"Você parece estressado hoje.Quando Carlos descer pra jantar, posso passar aqui e lhe relaxar um pouco."

Sentiu o rosto corar.Novamente, não respondeu.

A mulher riu, e ele não gostou da risada.

"Ah, querido, você está estranho demais.Certamente uma noite comigo lhe fará bem.Até mais tarde"

Ele saiu e o elevador se fechou com ela dentro.Começou a descer para o térreo.

Abriu a porta do apartamento com dificuldade.

O lugar era amplo, mobiliado com certo luxo, e organizado a ponto de parecer insosso.

Talvez as broncas de seus pais para arrumar o quarto realmente surtiram efeito naquele futuro.

Retirou o sobretudo com cuidado.Seu pulso direito estava entortado pra cima, e roxo.Saía pus por um corte profundo.

Encontrou o banheiro e foi até lá.

E então se olhou devagar no espelho.

Deus...era ele.Era ele mesmo.

Os mesmos olhos, a mesma cara.Mas agora ele tinha uma pequena cicatriz abaixo do olho direito, na diagonal, que se estendia por seis centímetros.O rosto era muito mais grave, os traços muito mais marcados.O cabelo estava escuro e curto, um cavanhaque cheio lhe cobria a parte inferior.O olhar era frio, duro, inquisidor.

Retirou a camisa e viu que a má forma agora dera lugar a um corpo mais bem trabalhado, mas com várias cicatrizes parecidas com a do rosto.

Se aquilo era um sonho, era o mais real que já tivera em toda a vida.

Abriu a torneira e começou a lavar.A dor diminuira com a agua gelada, e ele amarrou a toalha de rosto em torno do pulso.

Saiu do banheiro e voltou para a sala de estar.Um aparelho que parecia a mistura de um telefone e um notebook ao mesmo tempo estava na escrivaninha.

Havia um número 7 em seu visor, e entre vários botões, ele identificou um que tinha o ícone de play.

Apertou e a secretária avisou : "Sete novas mensagens.Primeira nova mensagem, recebida ontem ás vinte e uma e quarenta."

A música, que antes era quase inaudível no elevador, agora novamente retumbava.

"Senhor Palomo, gostaríamos de saber se irá utilizar o Lexus ou o Vectra na reunião de amanhã.Lembro o senhor que passaremos ás 15 horas na frente de seu prédio, e que nos juntaremos á carreata do senhor prefeito ás 15h20, na altura da Rebouças.Grato, Paulo."

"Segunda nova mensagem, recebida hoje, ás oito e trinta e um"

"Diego, eu....eu estou arriscando minha vida com isso, mas por favor, me ouça.Sou eu, seu tio. Há anos que você se afastou, principalmente depois daquele acidente que destruiu nossa família, mas eu queria dizer que..."

Uma voz embargada e melancólica se misturou a um som de choro.

"...que...ainda amamos você e ainda podemos ser a família que éramos na sua infância.Por favor, nos perdoe.Sentimos sua falta...e..."

A voz então desabou de vez em um choro, e a mensagem se encerrou.

Ele apertou o pause antes da voz anunciar a terceira mensagem.

Que tragédia ? Quem morrera ? Ele abandonara a própria família ?

Sentia um ódio em algum lugar dentro dele, mas não conseguia detectar o porquê.Olhou um retrato na instante e correu para pegá-lo. Reconheceu a foto.Era de 2008.

2008.

Ainda era adolescente e nela haviam seus pais e sua avó.


A última foto que tinha, era de 2008 ? De 18 anos antes ?

Sua cabeça começou a girar e a música agora era ensurdecedora e só potencializava a sensação de perda.

Havia um MP3 em cima da mesa.Ligou e olhou no visor.Uma pasta lhe chamou a atenção.

"Mensagens para sempre, idiota."

Haviam três mensagens.

Deu play na primeira.

"Mensagem armazenada referente ao dia 30 de Dezembro de 2011."

"Di, eu...gostaria de pedir desculpas por qualquer sentimento ruim que te causei.Gostaria de saber se você me perdoa.Eu preciso saber."

Reconhecera a voz.Era ela.Maldição, era ela ! A garota que ele gostava na época.Como...como o tempo passara assim, e...Deus, que dor !

O aparelho automaticamente subiu pra segunda mensagem.

"Mensagem recebida no dia 30 de Dezembro de 2016"

"Eu amo você.Desculpas por ter sido tão dura, por ter te machucado tanto.Por ter feito você se sentir um filho muito exigido.Não era minha intenção.Eu e seu pai estaremos lhe visitando hoje.Está chovendo, reze para que a viagem seja segura."

Agora a música era rápida, punitiva, as paredes pareciam que estar se fechando sobre ele.

"Terceira mensagem.Recebida agora"

Então seu coração saltou.Ele caiu no chão.Era uma dor impossível de ser traduzida em gritos.Era impossível de ser controlada.

Sua respiração foi parando, e de repente, diante de seus olhos, todos os últimos 15 anos se passaram.Viu todas as pessoas que gostava morrendo, o futuro se deteriorando, a crise econômica varrendo a terra, injustiças se multiplicando, ele tentando salvar tudo isso e se perdendo de si mesmo, a dor da garota, e então um grito subiu por sua garganta e ele chorou como nunca : 

"NÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO !"


Então um clarão.


E ele acordou na cama.Sentia raiva.Medo.Dor.Tristeza.

2026 parecia o reflexo do que 2011 havia começado a tornar ele e o mundo.

E parecia real, real demais.





2011 em uma palavra  ? Impossível.





AD INFINITUM.






1 comentários:

Unknown disse...

nossa legal D+ gosteei muito... x)