"Dois de Novembro de 1944.
O campo estava encharcado, e a subida era íngrime e cheia de obstáculos. Ninhos de metralhadoras cantavam do lado mais alto, espalhando, entre suas rajadas, ondas de som e morte. O cheiro acre de sangue permeava a atmosfera.
Ordens em alemão gritavam : "Feuer ! Feuer !".
Ele olhou para a peça que trazia guardada no bolso. Um medalhão com o rosto da mulher que amava, e ficara no Brasil.
Olhou para o lado, e vira que o colega americano, da guarnição que havia se juntado a eles no dia anterior, para a tomada de Monte Castello, na Itália, jazia com os olhos vidrados para o céu.
Outros companheiros gritavam de dor, alguns outros gritavam mensagens de incentivo.
"Avante, praças ! Avante, Pátria Amada Brasil !"
Então ele fechou os olhos cheios de lágrimas, e disse para si mesmo :
"Mais do que por minha nação, mais do que pelo mundo, faço isso por você, minha amada, por minha família, por meus amigos, pelos sonhos que juramos construir !"
Levantou o rifle á frente, abaixou a cabeça e subiu colina acima. Alguns amigos caíram á sua direita e esquerda. Ele não desistiu. Ele foi até o fim.
Morreria lutando pelas coisas mais importantes da vida. Assim como sempre viveu."
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"Dois de Novembro de 1913
O chão rachado do sertão baiano só era menos marcado do que seu rosto. Ernestina tinha que manter quatro filhos e ajudar o marido batalhador. Seu patrimônio era tão seco quanto - apenas dois bois magros e um engenho, para moer a pouca cana que tinham e produzir rapadura, que era sempre vendida no final do mês no centro da cidade grande.
Seu menino mais velho, Edno, estava lá, sentado na porta da casa de pau a pique, olhando a terra ardente.
"Mas o que tu tá fazendo aí, cabrito ? Venha ajudar teu pai e tua mãe, que a comida não vir da sua imaginação, não !"
"Mainha...me responde uma coisa : No meio desse sol da peste, dessa terra, dessas mão nossa tudo cheia de calo, quando é que a gente começa a ser feliz ?"
Ernestina sentiu o golpe fundo no coração, como nem mesmo a fome golpeava.
"Oxente, menino ! Feliz tu é sim, e trate de ser mais agradecido, que Deus castiga ! Vá, vá ajudar seu pai a mexer o melado !"
O menino saiu cabisbaixo ao trabalho. Ernestina sentiu a mágoa apertar no peito e a vontade de chorar mais uma vez crescer como o diabo gostava de ver.
Não chorou. Tinha que dar um futuro digno pra seus meninos. Chorar ficava pra depois da morte."
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"Dois de Novembro de 1969
No bolso da camisa da flanela, o pacote de cigarros Diplomata repousava imóvel.
A cavalaria da polícia chegava em peso, distribuindo bombas de efeito moral nos estudantes.
" Roberto ! Roberto ! Bicho, dá no pé ! Se sacarem que você é repórter da Cruzeiro do Sul, vão te levar pro Dops e te dar como jantar pro Delegado Fleury ! "
Roberto não correu. Pegou a Kodak que sempre tinha por perto (naqueles tempos, em que a ditadura agia e massacrava em público e sem maquiagem pra inglês ver, a Kodak tinha virado uma ótima ferramenta), e tirou fotos dos estudantes ensanguentados, correndo por suas vidas. Apanhar era uma boa coisa, até - problema era ser preso e fichado como comunista.
Virou as costas e entrou na Rua da Consolação, já pronto pra pegar a Vespa e correr pra redação, quando dois policiais o pegaram e arrastaram para dentro da viatura.
Roberto não sabia que seria terrivelmente torturado nos próximos três meses. Mas sabia que iria resistir - e viver pra contar a sua história e continuar combatendo o Estado opressor."
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"Dois de Novembro de 1994.
Seu corpo já não aguentava mais o peso da idade. Era avó de oito netos, e havia atingido a formidável idade de oitenta anos.
Ás vezes, se esquecida do nome de alguém. Ou do que estava fazendo a cinco minutos atrás. Havia passado por uma cirurgia do coração e o Alzheimer castigava sua mente.
Mas, quando ela olhava para aquela família que havia ajudado a construir, toda sua dor ia embora. Que felicidade ter a casa cheia !
Naquele ano, a maior referência, o maior herói de todos, havia morrido tragicamente. Seus netos eram fãs incondicionais de Senna. Cortou seu coração vê-los tão tristes após o ocorrido, assim como o comentário de seu filho Armando, que havia dito que "Senna foi a última coisa boa que ainda restava por aqui e no qual todos acreditavam"
Ela não podia discordar. Havia passado mal na última vez que ficara na fila do INSS, e tinha visto tantas crianças pobres na rua...ah, como doeria ver seus netos seguindo aquele caminho !
Mas isso não ia acontecer. Dona Alzira trabalhara a vida toda para que eles tivessem uma vida melhor. A história não iria parar."
Dois de Novembro de 2012.
Tenha certeza : Seu avô, seu pai, suas tias, alguém que teve importância fundamental em sua criação, passou por algo parecido ás situações acima.
O mundo sempre foi pior do que o hoje lhe trás pra viver.
Há 60 anos, as mulheres da sua geração tinham que lutar pra ter o direito de estudar. Se você fosse negro, não poderia andar na mesma calçada. O mundo poderia explodir em uma guerra atômica antes de você acordar. Pouca gente sabia ler, vacina mal existia, machismo era status, miséria era rotina, malária e febre amarela, marca de nascença do terceiro mundo.
Eu lembro de como meu avô trabalhou de domingo a domingo pra sustentar sua família, de cinco filhos, meus tios, tias e meu pai. De como ele, perto da aposentadoria, teve uma série de derrames por conta disso, e teve sua vida limitada.Mas aguentou até o final e não deixou a peteca cair.
Lembro de como meu pai recebeu a notícia, aos 25, de que não viveria mais cinco anos por um problema sério nos pulmões. Ligou o foda-se, seguiu em frente, construiu uma carreira e está vivo até agora, 25 anos depois. Chegou a ir procurar trabalho com um real no bolso durante mais de uma semana, conosco sobrevivendo com a ajuda de vizinhos.
Ou de como minha mãe levou um tiro na perna quando estava grávida de mim, vítima de uma bala perdida no tiroteio entre policiais e bandidos. E de como aguentou firme pra que eu pudesse nascer.
Ou então, lembro do meu amigo com câncer, ficando cada vez mais magro e fraco, e ainda assim, falando pra mim : "Vai lá cara, você tem futuro ! Você vai arrebentar !".
Lembro das minhas avós me dando carinho. Cuidando das minhas doenças, embalando meus sonos tranquilos.
Eu lembro de como meus antepassados fugiram da Espanha, em pleno período de Guerra Civil, pouco depois de passaram pela pior pandemia do século (Gripe Espanhola), e vieram pra cá.
E não tenha dúvida : seus pais, avós, antepassados, com certeza ralaram muito pra você estar agora, nesse momento, tendo a oportunidade de estar na frente de uma tela, lendo este texto.
Por isso, não lembre de seus mortos apenas neste dia Dois de Novembro. Lembre-se todos os dias, quando se sentir desmotivado, triste, de saco cheio, preocupado com status de facebook ou marca de roupa, ex-namoradas ou notas de prova.
Lembre-se que gerações viveram, lutaram e morreram para que você estivesse aqui. Você é o presente mais único, caro e bem feito que a sua herança poderia produzir.
Construir uma história, uma família, um pedaço de algo concreto para todo sempre é o mínimo que você pode e deve fazer.
Os mortos não estão mortos - eles vivem para sempre em suas marcas indeléveis no mundo - e a maior dela é exatamente você.
Gerações passadas fizeram grandes coisas pela humanidade - da criação de curas para doenças terríveis, passando por criações de organizações voltadas para a paz de todos, movimentos culturais de importância e criatividade incomensurável e até mesmo a chegada na lua - enquanto nossa geração ainda não fez absolutamente nada. Somos fracos por opção ! Precisamos mudar isso, ou entraremos para os livros como uma geração morta, que não fez diferença alguma e não fez jus á memória de nossos ancestrais.
Você está morto - até que tenha vivido direito. Então faça isso. Antes de reclamar, pense em todas as guerras e batalhas que as pessoas que você mais ama tiveram que passar pra você ter esses preciosos segundos. Não os desperdice chorando ou maldizendo o destino.
Pegue seu rifle, sua Kodak, seu suor. Vá, construa sua parte !
A imortalidade está lá. Pegue-a !
Parabéns, nesse dia e por todos os que estão por vir, á quem fez de nós o melhor que pudemos ser.
AD INFINITUMN
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