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terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Morto e o Executivo






"Hey, quer saber o que eu vi e ouvi em um filme, um dia desses ? Eu vou te contar, garoto.

 O fim do mundo estava próximo, o juízo final estava se aproximando, com anjos e demônios por todas as partes invadindo a Terra, aquela coisa bíblica hollywoodiana e o caralho a quatro.

 E o cara era o herói do filme. Então ele se virou pro pai dele, desesperado pela situação, e disse : 

- Porra, o que vai ser de nós ? E nossas vidas ? E tudo que conquistamos ?

Então o pai do bastardo vira e diz :

- Você fez da sua vida o que gostaria que ela fosse ? Você trocaria o dia de hoje, que está no final, pela oportunidade de outro, nestas mesmas condições ? Faria melhor, se acordasse 24 horas atrás ?

E o bastardo, com toda a pose de ator americano formado em alguma escola de baixo custo, com muitos músculos e pouco talento, vira e diz :

- É claro que faria ! Vamos detonar esses malditos e salvar a humanidade !

- Não, imbecil. Você não faria. E por isso, o Juízo Final não faz diferença alguma. Você morreu há muito tempo, só não percebeu ainda.Vá assistir televisão e deixe essa arma comigo.

Então saca só, garoto. Eu tô vendo a infelicidade no seu olhar. São dez da manhã. Vire as costas, começe a andar e vá atrás de algo que te faça feliz. Estou sendo seu amigo, porque gosto de você e sei do seu talento.

Vai logo, porra !"


O sol morria por entre nuvens de chuva no fim daquela tarde. Eram seis, o seis do crepúsculo, do acordo comum e imortal entre dia e noite.

Uma conversa rápida com alguém do trabalho, e se dirigiu á estação do metrô mais próximo. As catracas estavam fechadas aonde normalmente se encontravam abertas, e houve uma fila considerável pra chegar na plataforma número dois.

"Se passaram oito horas desde que fui avisado sobre mim mesmo."

O sistema sonoro avisava sobre um defeito em algum trem, em algum lugar, e haviam pessoas paradas e cansadas em cada canto do lugar.

Olhou para a escadaria e sentiu vontade de voltar. Seus pés pareciam apertados, a bolsa pesava na mão direita, o ar estava quente.

Segurou mais cinco minutos.

O metrô veio, e ele foi junto.

Desceu duas estações á frente, e encontrou outra, esta tradicional, plataforma completamente tomada por gente de todos os tipos. E paradas.

Sob sua cabeça, havia um outro relógio de estação.

E ele batia tão alto em sua cabeça.

Tic, tac, tic, tac.

"Esse é o som de sua vida passando. E toda vez que ouvir cada batida, saiba que é uma batida a menos de seu coração"

Tão cruel. Pessoas passavam mal no metrô todos os dias.

"E eu estou morrendo. Não sob as rodas de um trem, mas ao lado da moça ouvindo Cone Crew e atrás do idoso cheio de caspas."

Após dez minutos, voltou a andar.

Outro metrô, outro trem.

Cinco, dez, quinze, vinte...

Desceu pontualmente na estação Villa Lobos.

Havia um bêbado nas escadarias. Estendeu o braço para pedir dinheiro, e ele o ignorou.

 Saiu pelas catracas, pegou velocidade para sair da marquise e...

Chuva.

Certamente, um problema não tão sério. Havia o guarda chuva na bolsa e...

"Damn it. Eu deixei o guarda chuva no trabalho"

Era interessante como conseguia se lembrar até dos objetos na mesa em que ele havia deixado o guarda chuva, mas não havia se lembrado de pegá-lo.

Se a memória de um ser humano era seletiva, a dele escolhia muito mal.

Um raio cruzou o céu e a linha de transmissão de energia se tornou, por um instante, incandescente, soltando faíscas sobre sua cabeça.

Se lembrou da última vez em que se metera sob uma chuva para chegar na faculdade. A camisa ficara tão ensopada e colada ao corpo, e os olhares em menos de cinco minutos, no trajeto portão-banheiro foram tantos, que ele só saiu de lá uma hora e meia depois, mais seco e direto pra casa.

Não, nada de traumas, os terapeutas andavam caros.

Voltou atrás e pegou as mesmas escadarias.E lá estava o bêbado, de barba cheia e pernas tortas.

"Ô, GENTE BOA ! Ô EXECUTIVO ! ARRUMA UM TROCO AÊ ?!"

Aquele havia sido o melhor elogio do mês. Executivo, e gente boa. Ah, é claro que ele tirou uma moeda de um real e entregou para o bêbado.

Sentou no banco de plástico e encarou as gotas caindo no rio. Silêncio.

O trem (Sétimo ? Oitavo ?) chegou sentido Oz.

Encostou no último vagão, olhar perdido na escuridão lá fora. Ousou, por um minuto, olhar pra frente. Uma garota, de uns vinte anos, o estava olhando. A encarou.

E, para surpresa dele (será que ela também pensa que sou executivo ? Não tenho mais moedas...), ela retribuiu o olhar. E não desviou.

Ele sim.

"E se...e se eu tivesse continuado olhando ? E se eu fosse falar com ela ?"

Seu coração, de repente, acelerou e aqueceu.

"Levei nove horas e meia pra me sentir vivo, mas consegui, velhote !"

Então ela se levantou e desceu na plataforma.

"E lá se vai a bola do jogo..."

Desceu na estação final, e sentiu a chuva apertar.

Correu sob as árvores do parque, e chegou ao pequeno largo de ônibus. Não havia cobertura, e o ônibus só saía dentro de dez minutos.

"Quinze horas acordado, e nesse espaço, o ponto alto foi um quase affair.

Oscar Niemeyer tem uma vida mais agitada do que a minha. Todas aquelas enfermeiras em volta dele..."

Então a chuva piorou de vez. E ali, a imagem da derrota viva se fez.

Bolsa caída e cheia de pequenos rasgos, terno amassado, sapatos apertados, rosto com olheiras, ombros caídos, e tudo espetacularmente ensopado de uma forma que só faltava o caldo Knorr.

Poderiam tocar Mozart. Uma ópera. Do tipo que toca em "Shawshank Redemption". Ele sempre chorava como uma criança naquela parte em que o cara sai na chuva e curte a liberdade.

Mas o que tocou mesmo foi a buzina do ônibus avisando pra subir.

Ok, sérias restrições orçamentárias.

Era certo que se chegasse antes das vinte e duas da noite ("Deus - quanto tempo eu desperdiço por dia"), iriam falar que ele ia estourar as notas e faltas da faculdade. E mesmo se contasse tudo que lhe ocorrera, ainda que de forma completa (destaque especial e de consideração ao bêbado puxa-saco), iriam concordar e depois falar entre eles que era mentira pra não ir á aula.

Então era melhor passar na padaria. Tomar algo, relaxar. Uma batida, uma Bud. Algo leve, e depois ir pra casa.

Desceu na padaria e ia entrar quando viu a cabeleireira da esquina.

Não estava devendo pra ela. Mas, especificamente a cinco anos atrás (quando ele ainda era vivo), havia levado uma namorada em casa quando seus pais não estavam, para...jogar videogame (versão oficial, para todos os efeitos).

Tudo deu certo, até a volta da viagem, quando a cabeleireira da esquina (que ser humano, que brilhantismo !) contou para a mãe do condenado que viu seu filho com uma garota nova pelo bairro.

É desnecessário, oh, leitor, contar o resto. Vocês não gostam de desgraça alheia. Não é pra isso que vocês vêm aqui (nem pra me chamar de executivo). Não sei se a história do video game colou para o idiota do terno molhado, mas um pacote novo de preservativos apareceu em cima da TV no outro dia.

Decidiu abortar, resmungando, a Original do fim de dia.

("Vinte e uma horas.Vinte e uma, o que é que eu fiz hoje ?")

Começou a descer a avenida e a chuva apertou de novo. Aparentemente, a memória seletiva acreditava que se molhar mais ainda faria ele se desmanchar.

"Senhora, sentimos muito, mas seu filho foi encontrado derretido ali no meio da avenida. Havia um pouco de açúcar União junto, então estamos tentando juntar tudo pro enterro, mas vai levar tempo".

Foi então que um - alguém pode tocar Mozart ? Por favor. - drogado se aproximou.

"- É TUDO VERDADE SINHÔ, NÃO É NÃO ?"

Não respondeu, e virou a cara pro outro lado da rua.

Uma criança vinha passando com o guarda chuva e uma sacola do supermercado. O drogado tentou pará-la, e a criança se assustou.

Foi movimento automático dele - um braço levantado e um drogado no chão.

A criança saiu correndo e o drogado se levantou assustado.

"Isso ! Arrumei uma briga. Tyler Durden seria meu amigo agora."

" - Ô IRMÃO, PAZ DE CRISTO, TU É IRMÃO, NÃO É NÃO ? ESSE TERNO AÍ...ME AJUDA IRMÃO, DÁ UMA MOEDINHA"

A resposta veio curta e com voz estilo Batman.Rosto escondido no breu do prédio, roupas escuras, olhos ameaçadores.

"Não".

O drogado arregalou os olhos e saiu andando.

E  aí ele foi também. Sem batmóvel, sem bat-guarda-chuva. Atravessou pra casa. Sem se desfazer na tempestade.

Mas ouvindo reclamações quando entrou pela porta de entrada. Desceu, trocou de roupa e sentou na mesa.

Escreveu o email :

"Hey, velho amigo, tão experiente, virei as costas e vivi o dia.

Descobri que tenho mesmo uma excelente capacidade de rir de mim mesmo, e de fazer as pessoas rirem junto. Também tenho uns lampejos de coragem quando pessoas em condição de inferioridade são ameaçadas. E não sou feito de açúcar. Minha memória seletiva é estúpida, mas vou acreditar em que me chama de inteligente.

Resumindo muito bem : eu sou um morto muito louco.

Fico imaginando o que vou ser quando começar a viver. Tenho potencial, não ? 

Att,

D.F.P"



AD INFINITUM
















2 comentários:

putresco disse...

Memória seletiva selecionando muito mal e bat guarda-chuva me fizeram cagar de rir.

Uma hora o ser humano não aguenta mais e reage por não poder mais se calar. Tolerância é diferente de tanga-frouxice.

É isso aê, cara, você é inteligente, só torce para o time errado! Hahah!


Como sempre, excelente texto, faz a gente viajar e se colocar na história.


Do seu caro raro leitor número Hum.

Oissac disse...

Prefiro não exaltar o quanto esta situação se parece com a minha, e devo dizer parabéns mais um vez pelo texto!

Algum dia nós vamos nos desafiar a falar com alguma garota aleatória na rua!