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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Reversal




Surrealismo.

Vivaldi toca alto nos fones potentes, com sua Tempestade ecoando pelos cantos da velha nova alma que desce ás escadas em meio ao caos da estação.

O apito das portas soa, e então a contagem mental de cinco segundos para que elas se fechem começa a soar, como a última chance de entrar por um portal e sair daquele mundo.

Ele corre, passos determinados e braços enrijecidos. Ele avança. Ele passa. Ele consegue.

Se acomoda no corredor entre outros passageiros. Coloca a bolsa formalmente entre as pernas. Tira o livro "1984" pra fora e abre nas páginas finais, aonde havia parado da última vez.

Antes, um suspiro de cansaço. Um olhar demorado e de um castanho avermelhado fita as labaredas de luz solar que emergem no final de tarde, um lago de fogo intenso e hipnotizante que se aprofundava no céu infinito, sob as mortais cabeças daquela cidade, resistindo uma última vez á escuridão da noite que chegava.

Talvez - pensou ele - aquele antagonismo fosse rasgá-lo ao meio. A vida era o todo ao seu redor, e a vida era o todo em seu interior.

Estava desenvolvendo o germe da solidão em seu âmago. Não por falta de pessoas, mas tão simplesmente por cada vez mais se tornar um indivíduo definido, com um caráter inflexível, sonhos estabelecidos e um equilíbrio assombroso.

Não obstante, o silêncio mental que desenvolvia e a paciência que adquirira o aproximava de Deus. Aquele, Criador dos céus incandescentes e das formigas humanas.

Ele era um apreciador nato do universo. A garota com o lenço no pescoço. A música no celular ali perto. As luzes piscando. Os sorrisos trocados. O funcionamento complexo e eficaz dos servidores da empresa. A política dos homens. O prazer de um novo sabor. A falta de um beijo.

Nunca a vida fora tão perceptível e compreensível, como um espelho d'agua que se estabiliza após um tremor intenso que durara muito tempo.

Ainda assim, quanto mais se aproximava do amor pela existência alheia, maior era sua solidão.

Talvez, fosse assim que Deus se sentira ao criar á tudo que existe, e pensar como era triste ter coisas tão incríveis sem alguém para compartilhar. E então criou o homem. Criou a ele, á sua semelhança.

Não importa como fosse, não se espera que alguém atinja o nível complexo de questionamento existencial aos vinte e três.

Talvez um sexo á três. Uma prisão por dirigir bêbado. Uma nota alta na faculdade. Uma boa briga de bar. Um porre daqueles.

Arrogantes que somos, usamos o Tempo, inexorável senhor de tudo que cerca o nosso senso de vida, para medir quem somos, o que temos, o que ainda podemos ter, quanto mais podemos nos modificar.

E quem disse que o Tempo se mede ? Não o tempo dos átomos que giram sempre na mesma velocidade, ou das portas que se fecham após o apito. Mas o tempo que se vive. O tempo que se pensa. O tempo que se evolui.

Não somos porra nenhuma para querer dominá-lo. Não dominamos a nós mesmos.

Por uma certeza triste - e tão tristes são os momentos mais bonitos que encontraremos nessa estrada, pois a tristeza só é negativa pra quem não sabe o que é profundidade de ação e pensamento - percebe-se que é tão difícil compartilhar.

A revolta que cerca o garoto do trem, como pode ter cercado outras, é sobre a previsibilidade alheia. Sobre como não só se percebe e perdoa os erros de quem gostamos e queríamos gostar, como passamos a saber que eles vão ocorrer, e vamos perdoar novamente, e novamente, e novamente.

E perdoaremos setenta vezes sete. Porém, por nossa imperfeição irritante, nosso lastro de ódio e dor, ego e destruição, seremos convencidos, passo a passo, metodicamente, a não deixarmos sermos tocados, vistos por inteiro. Cem sólidos portões fechando uma só porta para o nosso mundo.

Pois, é menos difícil ser anjo dos outros do que ser anjo de si mesmo. Saber que os humanos traem, magoam, pisam, ferem sem razão, mesmo os que porventura gostem de você, e ter a possibilidade de amá-los e ajudá-los sem correr o risco de sofrer tais atos...porquê não ?

A lógica parece perfeita. Como a gravidade que não deixa as estrelas cairem sobre nossa tão sagrada e cuspida terra.

Mas não é. Não é, e, oh céus, porquê não ?


Essa é a reversão da nossa geração. Para ser de muitos, é preciso ser pouco. Para ser muito, é preciso aceitar ser de poucos. E saber lidar com esse universo abismal e imensurável que é a própria consciência e possibilidade de livre arbítrio.

Como naquela cena memorável de Cidade dos Anjos, o personagem principal pula de um arranha céus em direção ao chão, pois é assim que os anjos abrem mão de sua imortalidade para viver como humanos.

A motivação : Uma garota tão única em todo o planeta, que viver isolado de toda a dor e todo o medo, embora ajudando os outros, já não era suficiente. Aceitava-se todo o preço a ser pago pela possibilidade de viver ao lado de alguém assim.

O garoto do trem assume, ainda que timidamente, que já pulou de muitos prédios nessa vida.

E que nada o amargura tão fortemente quanto o fato de que há tempos não tem pulado mais. Faltam pessoas daquele tipo. E sobra gente precisando de ajuda.

Talvez o nosso destino seja mesmo não pular nunca mais.








AD INFINITUM




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