"A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão"
Mário Quintana
O pôr-do-sol fora desvanecido pelo negrume do céu que despejava a tempestade na velha metrópole.
Em meio ás casas de um bairro de alto padrão, ele vinha como uma - negra - ovelha desgarrada de seu grupo.
Jaqueta de couro, cabeça raspada, uma camiseta estampada com um lobo enfezado, calça escura, tenis desgrenhado. A face de um rebelde pronto pra bater no governador do estado.
Dizia a lenda do século XXI que o GPS era uma maldita ferramenta que servia para auxiliar pessoas á se localizar em qualquer lugar. Lenda. Já estava quase 300 metros distante do local em que deveria estar, guiado pela voz robótica da ferramenta.
Havia um senhor em uma cabine de segurança. Bigode farto, o típico personagem mexicano em filmes ianques.
"Hey, sir. Saberia me informar aonde fica a rua Waldemar Ferreira ?"
"Oito quarteirões atrás de você. Como veio parar aqui ?"
"Desculpe, sir. Mas nem eu sei explicar. Obrigado"
Coisa deliciosa, a de parecer um retardado na chuva.
Já haviam passado meia hora do horário de encontro. Aliás, ser britânico nesse ponto era um orgulho para ele. Se atrasar só o deixava mais puto ainda.
Passou por uma rua cheia de árvores densas. O ar começava a ficar rarefeito conforme a noite chegava e dava as boas vindas ao Carnaval.
Finalmente, achara o lugar. O bar estava apinhado de gente, sentada, na calçada, em pé. A chuva constante não espanta quem quer diversão na cidade de São Paulo. Ela atrai.
E lá estava ela. Faziam meses que não se viam. Em uma roupa preta e justa, com os mesmo rosto tão exótico e incrível. Persa ? Indígena ? Latina ? Ele não sabia precisar que mistura era aquela.
Só que era única. Incrível e absurdamente única.
Ela não deu a mínima pro fato de estar molhado, e foi logo abraçando. Sentaram-se em uma mesa reservada, e a cerveja logo desceu pela sua garganta seca.
Existem situações e pessoas que simplesmente não se explicam. Apenas são. E coisas aconteciam quando eles se encontravam.
Os olhos de lince o fitavam quando conversavam. E ele fitava-a de volta, desejando que o fogo da alma estivesse ali, vivo, na mensagem que passava. Coisa sobrenatural e superior a de transmitir pelos olhos o que todo o resto do corpo e da fala finge não dizer.
"Você é tão analítico. E eu sou tão emocional"
"Também sou emocional. Só não deixo transparecer assim, tão fácil"
"Vou te falar algo, e você vai achar que sou louca"
"Acho que eu já sou louco por você"
E então a escuridão adentrou de vez. Não haviam outras 500 pessoas naquele lugar.Apenas os dois, a mesa, a cerveja e aquela conversa que não precisava acabar nunca.
Levantaram, ao convite dela. Nunca, em outros encontros com outras garotas, ele permitiria ser conduzido. Ele era o sedutor. Ele era quem dominava. E era assim que as coisas davam sempre certo para os dois lados.
Mas não com ela. Coisas grandes aconteciam quando a dama de preto conduzia a dança da vida.
As mãos se tocaram sob a chuva, e então seus olhos estavam próximos como há muito não ficavam. E então, ele, que até então achava Carnaval um pé no saco pra enganar o povo, se permitiu ser Pierrot Apaixonado por uma noite.
Ela tinha o terrível poder de não ser única apenas por fora. Mas no beijo. Na mão que agia no tempo certo. Na respiração que entrecortava sincronizada com a sua. No corpo que encaixava corretamente.
Mais feliz. Mais leve. Mais homem. A dama de preto era o sopro de vida que sempre faltava ao final do dia para completar quem ele precisava ser.
Suas almas queimaram uma pela outra nos instantes que se seguiram. No bar. Na rua. Na cerca de plantas. No escuro do ponto lúgubre do terminal urbano.
Não havia tempo. Não havia medo. Não havia outros.
"Eu gostaria de passar a noite com você"
"Pelos sete infernos, eu também"
"Mas eu não posso...não hoje."
Apesar disso, nenhum dois quis se distanciar. E quando finalmente a despedida ocorreu, seus olhos ainda ficaram se cruzando, ela dentro do ônibus que partia, ele parado na rua, com um sorriso idiota e juvenil estampado na cara.
E ninguém pode dizer que estava apaixonado, ou ia dar em algo. Ninguém poderia dizer que voltariam a se ver. Ou que teriam outra chance de ser a dama de preto com a fera da chuva mais uma vez.
E talvez isso, em um paradigma absurdo, fizesse o que acabara de acontecer em um momento a ser lembrado pra sempre.
Era hora de ir embora. Hora de sonhar com a realidade.
Talvez fossem mesmo loucos.
E que Deus seja abençoado por isso.
AD INFINITUM
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