São Paulo, 17 de Julho de 2013, 17h50 - Tatuapé :
Dou uma última olhada pela internet para acompanhar os protestos na cidade. A estimativa oficial até aquele momento era de sete mil pessoas concentradas na Faria Lima. A avenida fechou completamente nos dois sentidos.
Pelas redes sociais, eram 200 mil presenças confirmadas. Me pergunto se a passeata seria um fiasco.
Encerro o expediente, desço a Tuiuti, cheia e imperturbável como sempre,pego o metrô até a República e de lá pego a linha amarela.
"Senhores passageiros, pedimos evitar o desembarque na estação Faria Lima, por conta dos protestos. Se possível, realize a saída pela estação Pinheiros"
Torço pra que não seja apenas precaução, e sim o anúncio de uma multidão. Um grupo de cinco garotos, aparentemente na faixa dos 16 ou 17 anos, fica em pé ao meu lado. Usam roupas de marca e claramente não são da periferia da cidade. Pelo diálogo, parecem também estar indo em direção ao protesto.
Um deles pega uma chave e tenta riscar o acrílico de proteção de um dos bancos.
"Porra, você pirou ?", repreende um dos outros membros do grupo
"Pirou o que ?"
"Estamos aqui defendendo o transporte público, e você depreda ele ?"
O garoto da chave levanta a cabeça e olha em volta, constrangido. Inevitavelmente, em meu já estabelecido estado de espírito revoltado, não consigo desviar o olhar condenador (e muito puto da vida). Ele guardou a chave e ficaria em silêncio até o final da viagem.
Estação/Avenida Faria Lima - 18h40
Chegamos na estação Faria Lima, e todos os passageiros olham pra plataforma, curiosos. Peço licença e saio com o mesmo grupo de garotos. A plataforma está realmente mais cheia do que o de costume.
Subo para o mezanino da estação, e então já ouço o som de bumbos, baterias, muita gente falando e cantando, e um ar diferente e incisivo está tomando o lugar. Em minha vida, devo ter descido umas 200 vezes naquela estação. Chutando baixo. Naquela hora, naquela noite, parecia um lugar completamente diferente, embora as paredes e coisas estivessem no mesmo lugar que sempre estiveram.
As escadas estão apinhadas de gente querendo sair, em todas as saídas. Pessoas cantam : "Ô, o povo acordou ! O povo acordou !". Mesmo sozinho, sorrio e começo a cantar junto. Durante as já ditas 200 vezes em que saía daquela estação por aquelas escadas, muitas vezes trazia comigo a sensação de estar sendo morto pela rotina desgastante de quem vive em São Paulo. O aperto nos vagões. O ônibus de trajeto longo que eu teria que enfrentar. As calçadas esburacadas. Mas não naquele momento. Ali, eu estava saindo pra fazer o que eu acreditava ser a diferença. A luta contra o que sempre me deu asco - coisas erradas que pareciam que seriam erradas até o fim dos tempos.
Chego na avenida Faria Lima, no cruzamento com a Teodoro Sampaio. Há MUITA, mas MUITA gente ! Muito mais do que os sete mil que eu havia visto a uma hora atrás. Com um pouco de dificuldade e alguns "com licença", "opa !" e "só um espacinho, por favor !", consigo chegar a um ponto aonde a passeata realmente ocorre e avança.
Não tenho cartaz. Não tenho bandeira do Brasil. Sem apito, sem corneta, sem batuque ou cara pintada. Um terno e uma camisa social suada depois de um dia inteiro. Que se exploda. Vão ouvir a minha voz.
Aprendo os cantos de guerra rápido - percebo como todos são adaptados de gritos de torcidas de futebol, que conheço desde pequeno, rato de estádio que sou. Não para de surgir gente de todos os lugares, e o que me chama muito a atenção é a diversidade do público presente : desde punks até pessoas mais velhas e que me pareciam muito sérias e emputecidas com o governo - gente que não me transparecia a sensação de que iria desperdiçar o tempo numa passeata sem sentido.
Na esquina do Shopping Iguatemi, de repente, juntam vinte ou trinta pessoas, mais alguns fotógrafos - alguém está no chão sendo imobilizado por outros manifestantes. Uma vaia descomunal ecoa na avenida, e logo começa o grito "Sem violência ! Sem violência !", respondido por alguns solitários "Ladrão ! Ele é ladrão !". Não paro pra ver, sigo em frente.
Encontro uma amiga em um posto de gasolina fechado logo após o shopping. Comento de como eu estava extasiado com toda aquela gente saindo de casa e dando a cara pra bater contra o que achavam errado. Não parecia o Brasil que eu havia aprendido a conviver (e desgostar). Andamos mais alguns quarteirões. Pessoas do alto dos prédios acenam com panos brancos. Cada pano que surge é recebido por uma salva imensa de palmas. Passamos em frente a um excepcional projeto arquitetônico no qual as pessoas que passavam na rua eram refletidas por completo na fachada do prédio - e então, centenas de pessoas começam a aplaudir a imagem. "Esse é o povo na rua !", grita alguém.
Uma senhora de 82 anos está parada no canteiro central. Dezenas de pessoas e mais uma dezena de fotógrafos (quantos fotógrafos existem no planeta, por Deus ?) tiram fotos dela. Mais tarde, ao chegar no facebook, eu veria milhares de compartilhamentos daquelas imagens sendo tiradas - como esperado.
Um pouco depois da metade da avenida, a marcha para. Não cabe mais gente. Mas o ânimo da galera não cai. "Quem não pula, quer tarifa !", e então todos pulam. "Ô Brasil, vamos acordar, um professor vale mais que o Neymar", e todos repetem. Alguém puxa o hino nacional, os milhares atrás de mim cantam num ritmo e os milhares da frente cantam em outro, quando o segundo grupo finalmente termina alguns segundos atrasado, todos aplaudem.
Alguém, em algum lugar na calçada, tenta soltar fogos. O barulho inicial é muito parecido com o do lançamento de uma bomba de gás lacrimôgeneo - e um silêncio perturbador seguido de um frio na espinha pareceu imediatamente se abater sobre todo mundo. Quando notam que foi um foguete de artifício, imediatamente, todos vaiam e é possível ver alguém levando um tapa na cabeça. Meus olhos, instintivamente, procuram quais ruas eu poderia usar em caso de correria. Nenhuma. Começo a suar frio e percebo que não sou o único.
Avenida Juscelino Kubitschek - 21 horas
Pro alívio de todos, a marcha volta a andar. Andamos mais quatro ou cinco quarteirões. Chegamos á JK, e então, subitamente, não há sequência. As pessoas vão para a direita, em direção á estação de trem. Vejo alguns muxoxos e comentários do tipo "ah...acabou ?". Já são 21 horas da noite, todos cansados, mas todos com vontade de mais. Sigo a multidão, passo pelo shopping de luxo (trancado e com pessoas dentro), por pessoas emburradas dentro de carros de luxo e motoristas e passageiros de ônibus sorridentes. Pego uma fila descomunal pra entrar na estação, entro no trem e volto pra casa.
Alguns amigos foram pra Paulista, naquela noite. Uma amiga foi com o grupo para o Palácio dos Bandeirantes. Eu estava com uma sensação maravilhosa de ter feito algo que gostaria - mas ao mesmo tempo, um vazio estranho. Foi como uma catarse - minha e de todos - botando pra fora a raiva da política brasileira, da falta de qualidade de vida. Mas, uma vez tendo ido embora o sentimento, a razão se perguntava : "Ok...e agora ? Quais as reais mudanças que queremos e o que podemos fazer ?"
São Paulo - Terça Feira 18 de Junho a Quinta Feira 20 de Junho
E foi assim que, na terça feira seguinte, na Avenida Paulista, e na quinta feira, na mesma Avenida Paulista, eu vi um clima quase que de micareta em muitas pessoas : "Uhul, vamos protestar ! Que país lindo ! Que gente linda ! Alegria, alegria !". Aquilo me desanimou. Ser pacífico é necessário, mas me pareceu a atitude de alguém que não sabe exatamente o que está fazendo ali - parece protestar porque todos estão fazendo isso, porque protestar é legal, é cool, é status no facebook - é remédio pra consciência. Vazio - e tão somente vazio. Não significa que as pessoas deveriam estar sisudas, violentas, inflamadas. Mas você não mobiliza centenas de milhares de pessoas depois de ANOS de congelamento e apatia pra isso.
Para piorar as coisas, alguns fatos estranhos ocorreram na terça - no dia, fiquei calado, pois, afinal, não sou o senhor das manifestações, também sou novo no ninho, e me julguei incapaz de definir o que seria um fluxo normal de acontecimentos. Porém, neste excelente texto da socióloga Marilia Moschkovitch, vi um relato totalmente lógico e que reforçou minhas preocupações.
Tão terrível quanto foi o MPL ter anunciado a saída da organização dos protestos após o governo anunciar, subitamente, que as tarifas seriam baixadas conforme solicitado, 48 horas depois de dizer que era impossível fazer isso e 24 horas depois de dizer que era preciso negociar.
Os protestos proliferaram pelo país, com muita violência e revolta - e nada exatamente claro.
Na quinta feira, vi, com infelicidade, grupos de extrema direita e brigas com militantes de partidos na passeata - o que realmente me mostrou que a coisa estava perdendo sentido muito rápido, como uma pessoa que se esvai de sangue depois de ter tomado um tiro de não sei de onde, não sei quando.
Sexta Feira, 21 de Junho de 2013
E, talvez, a gota d'água tenha sido hoje : tive que sair mais cedo do trabalho pois houve mais um protesto organizado para começar na Praça Silvio Romero, em frente ao prédio do meu empregador. Vi dezenas de adolescentes - nenhum adulto ou liderança aparente. Fui embora pra Osasco, aproveitei pra passar no mercado e comprar algumas coisas pro final de semana (cerveja, santa cerveja, comida, santa comida). Na saída, uma TV mostrava os mesmos adolescentes tentando parar a avenida Radial Leste - provavelmente a via arterial mais importante da cidade.
Alguns minutos depois, já dentro do carro, pego um trânsito sem sentido na Avenida Maria Campos, em Osasco. Vejo mais um grupo de adolescentes e - pasmém - crianças, pulando e com cartazes atravessando o trânsito. O mais incrível - e atormentador - disso tudo, é que não havia mobilização alguma marcada para aquele dia em Osasco.
Penso comigo mesmo, então : no começo, eu era a favor de interromper o trânsito, pois era necessário chamar a atenção da sociedade, era necessário aquela sacudida. A liderança do movimento era clara, o objetivo também. Pessoas sérias estavam envolvidas e interessadas no sucesso da causa.
Mas agora, eu via pirralhos de todas as idades e tamanhos interrompendo o trânsito em horário de pico por...pelo quê mesmo ? Para garantir a antipatia e a raiva das pessoas tentando voltar pra casa?
Duvido muito que o grupo de garotos de uns 10 anos que vi encapuzados tentando parar um ônibus com o cartaz saiba responder o que é uma democracia e quais melhorias efetivas ele gostaria de ver. Assim como duvido muito que as dezenas de pessoas que vi parando pra fazer pose de perfil e fazendo biquinho na foto, no meio da passeata, estivessem ali exatamente porque queriam um país com instituições fortes e maior eficiência em sua administração pública.
Não há mais lideranças, não existem objetivos em comum. As pessoas estão gritando contra coisas genéricas - "Abaixo a corrupção !", "Ei, você fardado, também é explorado !"ou "Ei, Dilma, VTNC !", quando qualquer pessoa com bom senso e experiência de vida sabe que a corrupção é um problema cultural, a polícia é doutrinada pra ser do jeito que é e se os policiais não executarem suas ordens perderão o emprego que sustenta suas famílias, e Dilma Rousseff está muito, mas muito longe de ser o problema do Brasil - se fosse, seria, no máximo, uma testa de ferro, uma laranja, pois a estrutura política está comprometida desde os menores municípios até o Senado Federal, e a Presidente não é Deus - uma das premissas da democracia é a de que praticamente tudo que ela faz deve ser ratificado pela câmara e pelo senado que estão corroídos por ratos. Logo, não faz sentido elegê-la como inimiga pública número 1.
Já ouvi de amigos e colegas propostas significativas, como fim do voto secreto, total investimento dos royalties do petróleo na educação, endurecimento da pena contra corrupção ativa, metas seguras de investimento na infra do país. Todas elas reformas estruturais - ou seja, ganhos permanentes. Mas, no objetivo das passeatas, não vejo coisas assim. Muita revolta, muita cartolina. Mas plano de melhorias ? Metas claras ? Cantos de guerra objetivos ? Liderança ? Organização ? CONSCIÊNCIA POLÍTICA ? Pouca. Mínima, ainda mais se pensar no número de 1 milhão de pessoas que foram ás ruas nos últimos dias, muitas delas com a vontade de mudança ainda sem qualquer direcionamento do senso crítico.
De repente, o anúncio súbito do governo atendendo a exigência de abaixar a tarifa faz sentido - tiraram o núcleo centralizador e organizacional de toda aquela gente nas ruas.
Algumas teorias da conspiração pipocaram por aí (como o da imagem abaixo), mas ainda prefiro me manter com um pé atrás pra isso.
O Brasileiro, que diz ter acordado como uma nação gigante, precisa entender que se levantar não é exatamente acordar. E que uma crítica que não aponte melhoria é dispensável. É destrutiva, e não construtiva. Se é pra instalarmos o caos, que saibamos exatamente a ordem que queremos estabelecer.
Não é o que parece.
Que continuemos indo pras ruas, que continuemos lutando. Mas que, além de nossas vozes, caras e mãos, também pensemos muito bem por quem estamos marchando. Nem sempre o que é feito pelo povo, é do povo.
É chegada a hora de sentarmos e discutirmos propostas concretas. E de ter lideranças oficiais. Que os corajosos e influentes se apresentem. Eu sou só um analista de T.I, afinal.
Obs : "Por Quem os Sinos Dobram ("For Whom the Bell Tolls") é uma obra prima do grande escritor norte americano Ernest Hemingway. Trata, basicamente, de uma crítica á brutalidade que se ocorre em uma guerra civil (como a que vivenciamos, ás vezes), e, principalmente, da miséria humana quando uma briga generalizada ocorre entre nós, irmãos - civis com cartazes, policiais tentando reprimir, cidadãos presos no trânsito.
Uma frase que pode resumir bem esta obra é : "Quando morre um homem, morremos todos, pois somos todos parte da humanidade". Não vejo frase melhor para evocar quão preocupado devemos estar com o rumo de tudo que tem ocorrido em nosso país. E de como só deveria existir um único lado nessa história. Mas tudo bem. Segue o jogo...
AD INFINITUMN
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