O ano é 302 antes de Cristo. O suor escorre pela sua testa, o calor do estábulo de madeira embaixo das arquibancadas é insuportável. O cheiro do sangue humano escorrendo pela arena lá fora, o rugido das feras, o urro das massas.
Pode sentir o horror no rosto dos outros escravos, que esperam a vez de lutar, ao seu redor. A falta de esperança, o cordeiro que espera seu destino inevitável. Cada batida de palmas, cada sinal negativo do polegar do imperador, e seus corações se silenciam cada vez mais na penumbra infernal daquele lugar.
Mas não você. Contra todas as possibilidades racionais e o medo que lhe seca a garganta e revira o estômago, há uma fé inabalável de que sua espada lhe trará mais do que a vitória e a sobrevivência por mais algumas semanas. Trará o poder. A glória. O reconhecimento do povo de Roma.
Gostaria de ajudar os outros. Mas eles já definiram seu destino quando puseram seus olhos fixamente no chão, impondo á suas próprias histórias um final e uma derrota que talvez não fossem necessários. Esse era o Coliseu. Essa era a vida. Aonde os fracos não tinham vez e havia mais sangue do que vinho.
Pão e circo. E ossos. Músculos. Morte.
As portas se abrem, o barulho das arquibancadas agora se parece como um prenúncio ensurdecedor do momento mais importante de sua vida - aquele que antecede sua provável morte.
Ergue a cabeça e entra encarando os romanos. O sol castiga seu rosto, o metal de sua armadura rapidamente esquenta e irrita sua pele. Não importa. Isso não é nada.
Olha fixamente nos olhos de Marco Aurélio, o Augusto. Ele sorri, imponente e olhando você e os outros cordeiros, com um sorriso sarcástico e arrogante no rosto sem cicatrizes. Ele pensa que é um Deus. Justo. Metade do mundo conhecido estava sob seu comando.
O imperador ergue uma mão e todos se calam. O discurso começa. São anunciados como heróis. Talvez o Coliseu fosse o único lugar do mundo aonde você é aclamado antes de ser condenado, destroçado e devorado vivo.
O discurso termina. As jaulas se abrem. As feras, de tamanho que você não vira nem mesmo nas planícies da Galícia, avançam espumando pela boca. O escravo mouro e franzino ao seu lado agarra seu braço e tenta se esconder atrás de sua proteção. Você o empurra para o lado, e já pode sentir a adrenalina dilatar as veias de seu corpo. A boca seca. A respiração descompassada. O som das batidas do seu coração.
As feras avançam, a poeira sobe, as espadas dançam.
Guerra.
O leão de quatrocentos quilos e dois metros ao todo cai sobre seu escudo. Sua pata gigante procura seu pescoço, e ele deixa por um instante seu peito aberto.
E ali, naquele microssegundo, não há mais dúvida. Nasceu para aquilo. Para a guerra. Para aquele exercício insano e diário aonde é tudo ou nada. Seu pulso se contorce, a espada encaixa no ângulo certo e você apenas deixa ele vir, com seu peso sedento sobre você.
Venha, bastardo de merda. Venha á mim.
Ela entra, suave e certeira, no coração do monstro que agora solta um último som gutural e assustador de dor e derrota.
Aguardando os últimos suspiros, você levanta, o empurra pro lado e se levanta. As pessoas de pé, gritando seu nome, extasiadas. Á sua volta, os pedaços de todos os cordeiros mortos. As feras restantes, satisfeitas, sendo levadas de volta ás suas jaulas.
O único sobrevivente. O único a saber matar. A saber sobreviver. A querer o gosto da decisão de último segundo.
Olha para o imperador. Ele levanta o cálice e lhe saúda. Vira as costas e vai embora.
Esse foi mais um dia, gladiador. Que Ares seja louvado.
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O ano é 2013 depois de Cristo.
Já não há mais arenas. Ou feras soltas. Ou imperadores. Ou morte gratuita.
Mas seu espírito ainda vive, através dos tempos. Ainda precisa daquilo. De dias que nunca são iguais uns aos outros. Do extremismo de uma vida cujos momentos são sempre únicos e bem aproveitados, pois a morte sempre ronda esperando um banquete.
Mas, não.
Não respeita a si mesmo como deveria. Não expõe seu potencial. Até mesmo esqueceu seus ideais, de tão sufocados que foram.
Você é o rosto que se perde na multidão. O passageiro número quinhentos mil do dia. O usuário que perde horas numa rede social. Aquele que alimenta esperança em pequenas histórias sem fundamento. A piada ao final do café.
E, naqueles breves momentos em que sua personalidade, em que seu espírito, pede liberdade, os momentos em que todos os seus poros, e nervos, e sentimentos, pedem, imploram, gritam por um pouco de realismo e respeito consigo, você os reprime.
É melhor ser mediano. Cara legal. Eficientemente pacato cidadão. Uma máscara socialmente aceitável. E ignorada, porquê não.
Em um mundo repleto de cordeiros precisando de uma espada para liderá-los e torná-los leões, você se serve como banquete de hienas. Não é assim que se faz jus á uma nova oportunidade aqui. Não há justiça, ou glória, ou evolução, ou história á se contar.
Assuma quem você é. A mediocridade não combina com você. Para quem viveu dias de luta, o que são esses medos pequenos que te matam dia a dia ? Qual é a arena da sua vida ?
Cada um tem o seu destino. Nem todos são gladiadores. Há os sábios. Os anjos. As Valquírias. Os profetas. Os trabalhadores. Os honestos. Os gentis.
Mas, se você leu até aqui, saiba de algo certeiro : inferior e limitado você não é. Largue essa casca e venha para o campo de batalha. Cordeiros não mais.
E que hoje seja o último dos dias comuns. Ao coliseu da vida, parceiro.
AD INFINITUMN
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