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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Hear the Sirens







"Oh, é uma coisa frágil essa vida que levamos;
E se eu pensar muito, eu não consigo superar isso...
Pela graça, pelo modo como vivemos nossa vidas, com a morte pousando sobre nossos ombros"

Sirens - Pearl Jam


O céu estava negro, coberto de nuvens pesadas e intransponíveis como chumbo. Relâmpagos cortavam o breu vez ou outra, em golpes infrutíferos contra aquela cortina gigante.

Chegou perto do píer, aonde poucos barcos descansavam. As águas estavam revoltas, e a garoa era a visita de sempre.

Londres, afinal.

Sentou na beira da rua do porto, deixando os pés flutuarem na distância entre o concreto e a água. Acendeu um bom e velho cigarro, relaxando o corpo e observando dezenas de holofotes no alto dos prédios começarem a acender e mirar o alto.

Deu uma longa tragada, sentindo a nicotina tomar as vias. Olhou no relógio gigante do Big Ben, distante algumas dezenas de metros. 02h16. Ingleses eram sempre pontuais, mas isso não se podia falar dos nazistas, que sempre atacavam em horários confusos. 

As sirenes começaram a soar, primeiro baixo, depois aumentando, até um ponto em que os tímpanos pareciam implorar por misericórdia. As luzes dos holofotes agora dançavam freneticamente pelos céus. O silêncio da noite fora quebrado, e agora, cães latindo e o som de pessoas tomando as ruas da cidade e correndo para os abrigos era a sinfonia da vez.

Olhou novamente no relógio. 02h20. Aonde estava o maldito garoto ?

Percebeu algo se debatendo na água. Não havia peixes no Tâmisa, não naquela parte, então foi fácil entender que ele havia chego. Uma mão desesperada saiu da superfície, e o soldado logo a agarrou e puxou, firme.

Do rio, frio e escuro, saiu um homem. Rosto fechado, cabelo quase raspado, um pouco fora de forma. Tentava respirar, cuspindo um pouco de água e socando o chão.

- Bem vindo á Londres. Cigarro ? - Estendendo o pacote guardado no bolso da jaqueta.

- Cigar...grasp...cigarro ? - Respondeu o rapaz, quase em tom de "você é retardado de me oferecer fumo enquanto estou procurando oxigênio ?"

O soldado deu de ombros e voltou a guardar o maço, tirando um recipiente com um bom scotch dentro. Ele gostava muito daquele Blue Label, e só mesmo numa situação daquela iria compartilhar o mesmo.

- Toma isso. Vai te ajudar a enfrentar o frio e se acalmar quando os fritz chegarem.

- Fritz ? Não vou tomar isso.

- É whisky. Do bom. Do tipo que você não tem dinheiro pra pagar quando acordar.

- Certo. Estou sonhando. De novo.

- Sim e não. Encosta aí.

O rapaz olhou pro alto dos prédios e viu metralhadoras imensas surgirem apontando pra cima. Pegou rápido que aquilo era um cenário da segunda guerra mundial. A maior parte das pessoas normais deveria sonhar com o trabalho, a vizinha e o Domingão do Faustão. Ele sonhava com guerras de destruição em massa. 

Bom. Muito bom.

- Ok. Encostado. O que você manda ?

- Qual o grande feito desse ano, camarada ?

- Eu poderia listar algumas coisas que outras pessoas consideram grandes, mas pra mim, nenhum.

- E como você justifica isso ?

- Tô fora de forma, ser herói pede condicionamento.

O soldado riu e pegou outro cigarro no bolso.

- Não quer mesmo ?

- Não.

- Sabe, falam muito mal das coisas da Inglaterra. A comida é ruim, o rio é poluído, o Churchill é um perneta filho da mãe. Mas daqui 60 anos, vocês vão pagar bem caro só pra tomar nossas cervejas.

- É verdade.

O soldado sorriu.

- Eu sabia que era.

O rapaz se assustou quando os primeiros tiros começaram a riscar a atmosfera do lugar. Ouvia barulho de turbinas ao longe, se aproximando. Algumas bombas caíram num bairro no horizonte e bolas de fogo seguiram instantes antes da chegada do som das explosões.

- Não se incomode. É um sonho, você não morre. Pode sentir dor, é claro, mas não vai acontecer nada até que terminemos essa conversa.

- Perfeito. Na verdade, não, mas continua, só acordo ás sete.

- Você sabe, garoto, que algumas vitórias levam tempo.

- Sei.

- Pois bem. Olha o que esses viados fazem. Cruzam o oceano e vem queimar nossas crianças. Toda manhã, eu acordo e vejo um pedaço a mais de Londres em ruínas, fogo e morte. A cidade sangra, garoto, e veja só, eu poderia matar todos os alemães se dependesse da minha vontade, mas a guerra não é travada só pela minha vontade.

- Não, não é.

- Ótimo. Continuando. Não quer mesmo um cigarro ? 

- Não.

- Eu tenho um rifle, uma faca de caça, um kit de primeiros socorros e um bornel de água. É isso que eu tenho contra a merda fedorenta do Eixo e aquele bigodudo afetado.

- Legal, eu tenho um notebook.

- O que ?

- Nada.

- Certo. Olha, garoto, eu não posso mudar o fato de que Hitler é um filho da puta. Nem de que esses aviões vão vir dia após dia, durante um bom tempo. Não posso controlar o desespero dessas pessoas no abrigo, não posso controlar o fato de que posso levar uma bala em qualquer momento. Eu não posso controlar nada além do meu destino. Meu, não o dos outros. Entende ?!

- Entendo sim. Não que eu ponha isso em prática, mas concordo.

- Então, vou te jogar a ideia. Você sofre muito com o que os outros fazem ou deixam de fazer em relação a você. Principalmente quando você se enrola com alguma garota ou arranja brigas com zé ruelas por aí.

- Sou um completo bastardo nesse ponto.

- Sim, eu moro no seu inconsciente, então eu sei. Deixa eu falar, porquê você não vai me ver novamente tão cedo.

- Claro, soldado.

- Da mesma forma que não posso mudar nada em torno daqui, desse meu rabo sentado nesse píer, você também não pode. A única coisa que você pode mudar é você mesmo.

- Certo.

- É claro que você pode influenciar alguém a ser melhor. Com o seu exemplo, não com palavras. Tá entendendo ?

- Tô.

- Então, pega essa...

O rapaz se preparou pra pegar o maço jogado pelo soldado, mas logo percebeu que era uma figura de linguagem e recolheu novamente os braços.

-...você tá sempre...espera, você queria um cigarro ?

- Não, cara.

- Certo. Você tá sempre se fodendo emocionalmente porque fica amarrado na aprovação alheia. E sabe porquê ? Porquê tu não bota fé nisso aqui - disse o soldado batendo no lado esquerdo do peito.  - Tu não bota fé em você, irmão. Não faz o melhor que consegue sempre, não enfrenta seu medo de forma total e inabalável. Você não é seu próprio herói, e aí, saca só, fica nessa de esperar o OK dos outros, porque tu precisa disso pra achar que é alguma coisa. Que porra é essa de se sentir frustrado por não ter a atenção contínua da garota que tu pegou outro dia, ou não ser reconhecido pelo líder daquela missão ? Atenção e reconhecimento você enxerga nas consequências do que tu construiu, porra !

O rapaz fitou o soldado, sem palavras. Definitivamente o filho da puta morava no seu inconsciente e manjava do que acontecia. Deu um chute direto no calcanhar de Aquiles, sem dó.

- Eu vou te falar, garoto. Até o fim dessa guerra vou ver muita gente amada tombar do meu lado, igual você viu tombar na sua vida esse ano. Eu posso até chorar, mas não vou abaixar a cabeça nem largar a arma não. Eu vou em frente, e vou chutar a bunda de todo e qualquer adversário que aparecer no campo de batalha, sabe porquê ? - O soldado puxou a famosa corrente com as placas com seu nome e tipo sanguíneo - Porquê eu luto por isso aqui, irmão. Pelo que acredito. Por eles ali, se escondendo no abrigo. Pela nação. Pelo mundo. Não vou mudar eles, eles é que vão querer mudar depois de verem o que vou fazer pela porra toda.

A pior sensação para o rapaz não era a de que a lição de moral estava certa. Era a de que ele já sabia aquilo, mas estava adormecido em algum lugar. O soldado tirou uma foto do bolso. Uma garota branca, de cabelos morenos e olhos expressivos estava nela.

- Tá vendo essa aqui ? É minha garota. Eu amo ela, quero casar assim que essa merda acabar. Só que eu vou te falar, garoto - o soldado pausou e acendeu outro cigarro -... eu não vou morrer nem ficar me lamuriando se terminar. Eu tô aqui, na frente da guerra, e não sei o que ela tá fazendo, se tá dando bola pra outro ou não, se tá pensando em mim ou não. Eu quero que se exploda. O que importa é que sou um bom homem, e se ela desperdiçar, problema dela.

- É verdade, soldado.

- Agora, você vai ficar com isso - o soldado arrancou a corrente e entregou pro rapaz. - Isso está com você. Lembre-se sempre : você tem uma guerra á travar, e se você se entregar, tudo que você ama e acredita é destruído e você tá condenado a se culpar por isso. Eternamente.

- Eu acredito.

- Então, não vai ser fácil, não vai ser mágica, mas tu vai acordar, e sempre que se sentir triste, derrotado, pressionado, vai lembrar que com um pouco de treino e coragem, você supera e encontra a saída pro problema. Não há mal que perdure pra quem sabe que é filho de Deus e tá destinado a fazer jus ao tamanho do chefe. Entendido ?

O rapaz sorriu pela primeira vez.

- Entendido sim.

Agora, havia o som de uma música pelos céus. Savior, do Rise Against.

- É seu despertador. Boa sorte, recruta.

Não houve tempo de responder. Tudo se clareou e ele se pegou encarando o teto do quarto.



Era hora da batalha.







AD INFINITUMN






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