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domingo, 15 de junho de 2014

Uma garrafa de Jack, por favor.




Existem dias que possuem peso zero.

Um dia com peso zero é aquele dia que não faria diferença ter existido ou não.

Todos os dias, inconscientemente, ele acordava exasperado á evitar dias assim. Como uma bomba relógio que iniciava ao acordar e explodiria ao adormecer novamente, caso algo de relevante não fosse feito nesse meio tempo.

Escravo de sua condição idealista, aquele estava sendo um dia de peso zero.

Mesmo com tanto futebol por aí. Mesmo com tanta cerveja disponível. Mesmo vendo pessoas que ele parecia gostar - e talvez gostasse mesmo.

Era um dia zero, e já passavam das dez da noite.

Tirou a garrafa de Jack Daniel's da bolsa, com o pouco que restava nela. Descobrira que o velho Jack era mesmo uma delícia, porém, seus tios também haviam feito esta descoberta no mesmo dia, com a mesma garrafa, e antes que o ponteiro maior desse uma volta completa no relógio, ele foi obrigado á resguardá-la em local seguro e protegido para evitar seu total esgotamento.

Família, família, álcool á parte.

Abriu a tampa e bebeu, da forma mais herege e irlandesa possível (embora o Jack seja yankee), no gargalo, um longo gole.

Jack desceu e não queimou como os escoceses adoravam fazer. Era um murro seco no estômago, daqueles que seu conhecido lhe dá de forma camarada em meio á uma brincadeira.

Então veio a sensação seguinte, que Jack sempre trazia : um conforto muscular, um pequeno brilho no olhar, e a sensação de que o mundo poderia queimar eternamente em fogo e morte, que estaria tudo bem para você.

Shakespeare dizia que o inferno estava vazio e todos os demônios estavam aqui, conosco. Os demônios dele apreciavam o Jack, também. Se calavam e permaneciam assim até o efeito passar. Jack era um cara legal.

Estava ali, mirando o nada, sentado na plataforma do trem, quando ouviu um "Blam !", bem ao seu lado.

Seus reflexos e senso de auto-preservação já tinham ido passear do outro lado do atlântico á esta hora, e ele se limitou á olhar para a direção do barulho.

Uma moça, lá dos seus vinte e poucos anos, chorava copiosamente com um celular na mão.

Pra infelicidade dela, o cavalheirismo e as preocupações com terceiros também haviam dado o fora quando Jack entrou, e tudo que ele conseguiu pensar em relação á cena foi um grande foda-se.

Ela chorou por mais um tempo - não dava pra saber quanto tempo exatamente era, porque Jack também fazia a Teoria da Relatividade do Einstein ser muito, muito real - até que na quarta ou quinta vez em que ela olhou pra ele e sua cara inapta, puxou uma conversa :

- Vocês homens não prestam.

Ele olhou novamente, numa velocidade desconfortável - a cabeça parecia ter ido, mas o cérebro ficado - e disse, após uns instantes de silêncio vago e constrangedor :

- Não.

A moça pareceu estarrecida. Ele não entendeu. Pessoas eram confusas. Ficavam sempre putas e levavam pro lado pessoal quando ele discordava delas. E quando concordava, elas o olhavam com aquela cara de "Você usa fraldas ? Seu bosta ! Me diga que estou errado !".

- Então você também não presta.

Ele olhou para os próprios culhões, e voltou a olhar pra ela :

- Bem, sou homem, ao que parece.

Ela riu de forma revoltada :

- Me ironiza mesmo. Não sabe o dia que tive. Não sabe o quanto estou sofrendo.

- Não.

- E você nem liga.

- Ninguém liga.

Agora, mais do que nunca, ela parecia ter sido esbofeteada. A boca fazia um grande "OH !" e os olhos lembravam muito os olhos daqueles touros sendo feridos nas arenas espanholas. Um misto de "vou morrer" e "vou te matar antes, seu filho da puta".

- Existem pessoas que se importam comigo.

- Elas não estão aqui na plataforma, moça.

- Você é um infeliz.

- Sim.

- ...

- Mas beba um pouco do Jack, vai te ajudar.

- Não sou alcoólatra.

- Não, mas é uma bunda mole. Dá na mesma, no final do dia ambos caem na sarjeta da vida.

- O que ?

- Foda-se.

Ele tomou mais um gole e estava feliz pela moça ir dando o fora, mas tudo que ela fez foi levantar e tomar a garrafa de suas mãos, virar dois grandes goles e devolver com uma careta de quem tinha tomado querosene.

Ora, deuses, vejam, aquilo era heresia.

- Jack é um filho da puta, cara.

- Todos somos.

- Sabe o que me dói ? Que quem me faz sofrer não irá vir falar comigo. Não vai ter mensagem no outro dia. Ou consideração. É assim. As pessoas te amam hoje e te fodem amanhã.

"Eu foderia com você", pensou ele, mas ainda não havia tanto do Jack no seu organismo pra inibição ter sumido por completo, e ele soltou a versão aprovada pelo Ministério da Cultura :

- Quem te faz sofrer é você mesma. Ninguém te fode se você não quiser.

- Não é simples assim.

- Na verdade, é, mas você irá romantizar pois se simplificarmos as coisas, veremos que nossas vidas são levadas de uma forma muito medíocre e aquém da nossa capacidade real.

Ela fez novamente - ele se perguntava se os músculos faciais dela eram de borracha - a mesma cara de "OH! Você cuspiu na minha cara, seu chulo, cavalo !".

-...você é um completo desastre para consolar pessoas.

- Um Chernobyl.

- E porque está aqui bebendo ?

- Porque tive um dia zero. Um dia morto.

- Não fez nada ?

- Fiz. E não fez diferença.

- E o que você vai fazer em relação á isso ?

- Vou beber.

- ...

- Você pode beber comigo também, desde que pare com esta auto-piedade digna dos ursinhos carinhosos.

- Auto-piedade é um defeito pra você ?

- Certamente.

- Não é auto-piedade encher a cara numa estação de trem num sábado á noite ?

- Sim.

- ...

- Mas eu tenho consciência de que preciso mudar. Tô mudando. Aos poucos.

- Porque ?

- Porque eu vou ter que me aguentar pela eternidade. Eu sou meu, e inseparável, assim como você é sua. E se é pra ser assim, a relação vai ter que ser boa, afinal. No mínimo, eu tenho que ser alguém que eu respeite. Se não der pra admirar ou amar, ao menos tolerar. E pessoas que se auto-flagelam por hobby me causam repulsa. Não merecem respeito algum.

Ela já ia fazer a mesma - sim - maldita cara novamente, quando o trem veio e ele se levantou.

- Meu trem tá vindo, moça. Foi um prazer.

- A gente se cruza qualquer dia desses.

- Não. Não tenho seu número, não sei seu nome, e você não vai me passar. Nem vai se lembrar dessa conversa por muito tempo, eu acho.

- ...Não, mas é porque eu namor...

- Desculpa, moça. Mas o Jack é a minha pílula vermelha da Matrix. Eu tomo, e em mim só resta a verdade. Você deveria tomar mais, também. Amanhã é outro dia, estarei politicamente correto, honesto, gente fina e sociável novamente, e aí...a gente "se cruza". Não é ?! Cruza sim. Sou um cara legal nessas horas. Legal demais.

Ela fez silêncio e apenas o fitou boquiaberta. Esmurrada novamente. Jack-Filho-da-Puta-Tyson.

Ele entrou no trem, sentou e pegou no sono.

Jack não sabia fazer mentir para si mesmo, ele notou.

Ia comprar uma garrafa a mais.


AD INFINITUMN






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