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sábado, 4 de maio de 2013

Origens





A porta do bar no Baixo Augusta abriu com um ranger desagradável.

Suas botas Timberland cruzaram o assoalho velho e mal conservado, até se sentar na mesa de quatro lugares ao centro do lugar mal iluminado. Os poucos ocupantes do pulgueiro lhe observavam de soslaio ou torcendo para seus olhares não se cruzarem.

Havia algo nele que transmitia hostilidade. Coçou a barba malfeita e rala, levantou dois dedos e pediu uma India Pale Ale. Amarga e forte, como ele gostava. Encostou na cadeira, levou os dois pés até a cadeira vazia mais próxima e sentiu a vibração da música Ace of Spades, que começava a tocar no Jukebox surrado.

Aquele era um encontro importante. Fazia muito tempo, mais de um ano, provavelmente, que eles não se encontravam. A guerra havia estourado em algum lugar lá fora, e então o Mundo começou a desmoronar.

Faziam dois meses que a noite não dava lugar ao dia, e por toda a parte podia se ouvir boatos que outra hora seriam desprovidos de qualquer crédito. Leis da gravidade não funcionando corretamente. Ruas que mudavam de lugar sozinhas. Pessoas que envelheciam vinte anos em um dia.

Ao menos o maldito pulgueiro da Rua Augusta estava lá, na mesma porra de lugar escuro e mal cheiroso.

Se havia um Deus vingativo naquela dimensão, ele não se dava ao luxo de se preocupar com os já condenados.

Sua concentração foi quebrada por um novo ranger vindo da porta. Vestindo uma roupa social e alinhada, o segundo integrante entrou sem qualquer preocupação de deixar claro seu incômodo com o lugar.

Encontrou o homem mal encarado sentado sozinho na mesa central. Sorriu de leve e foi até sua direção, estendendo a mão para cumprimentá-lo.

- Cara, existem puteiros de trinta reais mais limpos e aconchegantes do que isso.

Não houve reação alguma de resposta. Esperou o homem de social sentar, e então o homem mal encarado disse :

- Não há mais lugar seguro por aqui. Houve aquela grande explosão duas semanas atrás, e então o caos se intensificou. Aqui, pelo que parece, é um dos poucos lugares que não estão sendo perturbados.

- Eu sei, cara. Esses dias estava voltando do trabalho, e acredite, a linha vermelha do metrô agora vai até São Caetano.

- Fascinante. E nenhum desses idiotas nota a diferença. O mundo que ele construiu rege uma ordem indefectível mesmo quando o Apocalipse está ocorrendo aqui, ao vivo e á cores.

O balconista trouxe a Pale Ale. Encostou a garrafa gelada na mesa de madeira com um copo americano. O copo tinha visíveis manchas de algo que o homem de social preferiu não pensar muito a origem.

- Você vai pedir algo ? - indagou o homem mal encarado.

- Não, eu vou...digo... - ele então teve a nítida sensação de ter visto poeira no interior do copo -...não.

O balconista continuou olhando, inexpressivo, para os dois. O homem mal encarado então o olhou feio, e ele rapidamente moveu seu traseiro para atrás do balcão. Bebeu um grande gole da cerveja, e com sua voz rouca, continuou :

- Lembra da nossa última reunião ?

- Foi quando ele nos conheceu. Digo, conheceu a si mesmo. Que grande dia para todos nós ! Eu fiquei tão feliz por...

- Nossa última reunião foi quando ele descobriu que existíamos enquanto parte de sua alma. - Se havia algo que o homem mal encarado não tinha, era carisma. Lembrava muito um dos vilões de faroeste americano que faziam o saloon inteiro se calar.

-...sim. Bem, vamos ao assunto então. Aqui estão todas as informações que consegui coletar sobre a alteração do funcionamento de nosso mundo.

O homem de social tirou um grande relatório encadernado e uma pilha de DVDs da bolsa de couro. Se havia algo que o homem mal encarado gostava nele, era aquela eficiência sobrenatural. Isso era notável, principalmente, pelo fato de que quando o homem de social subia á superfície, as coisas no Mundo progrediam muito bem. Apesar disso, ele logo tinha que dar lugar a um dos outros dois, pois era ótimo profissional e tinha uma mente brilhante, porém era péssimo em tudo que exigia personalidade. O homem mal encarado pensava seriamente que lhe faltava testosterona, ás vezes.

O homem de social iniciou :

- Fica muito claro que tudo começou a cerca de dois anos atrás, um tempo depois da Revelação. Houve a Grande Noite, então algumas coisas realmente saíram do eixo. Depois, juntos, conseguimos reerguer tudo por aqui. Mas certas coisas, de fato, não voltaram á sua origem ou ao seu correto lugar. E desde então, esses períodos de instabilidade e essas aberrações que vemos por aí tem...

- Conte a partir do ponto em que nós não sabemos.

-...Ok. As coisas pareciam decadentes e há muito já não conseguíamos convocá-lo. Parecia que ele havia nos deixado aqui, desistido da vida e jogado a toalha. O Mundo começou a morrer de forma acelerada, e então houve a Explosão. Esse é o ponto importante da história.

O homem mal encarado terminou a cerveja e olhou no fundo dos olhos do homem de social.

- Prossiga.

- A Explosão, após a grande destruição inicial, diminuiu consideravelmente o avanço do fim do Mundo.

- E você sabe disso por...

Foi a vez do homem de social interromper :

- Confio no meu trabalho.

O homem mal encarado fitou a máquina de Jukebox, pensativo. Time, do Pink Floyd, rimbombava nas paredes do bar.

- Tem mais uma coisa, cara. O céu tem se aberto, ás vezes.

Seu coração se acelerou pela primeira vez em meses. O céu se abria apenas quando ele voltava ao Mundo. Se estava voltando a se abrir, então...

- Conseguiríamos chamá-lo nessa reunião ?

- Eu acredito que sim.

- Nós VAMOS chamá-lo. - disse uma voz que entrou pela velha porta.

Ele vestia uma camiseta justa ao corpo, calça jeans e tênis esportivos. O Ray Ban estava pendurado em seus dedos, e um sorriso indecente se estendia em seu rosto.

- Como pretende fazer isso, estúpido ? - O homem mal encarado não fazia questão de ser simpático com ninguém, mas fazia menos ainda com o homem que parecia uma versão atualizada de James Dean.

- Wow, wow ! Você nunca acordou de bom humor na sua vida ? Isso é falta de mulher, machão. Vou te arranjar uma. Fácil.

Não houve resposta, mais uma vez. Então o homem de social, constrangido, quebrou o silêncio :

- Eu...bem. Ele está certo. Nas outras reuniões, ele veio até nós, mas há uma forma de chamá-lo. Durante o sonho.

- E como vamos saber quando ele sonha ?

- Não sabemos. Iremos usar um pedaço de memória que nós três tenhamos em comum e ele também, e isso atrairá ele até aqui.

Todos os três sabiam quais tipos de memória compartilhavam. Não foi difícil pensar naquela noite quente de 1994, no qual um garoto ajoelhado na cama rezava á Deus agradecendo pelo dia.

E então, aconteceu.

O Jukebox rapidamente começou a tocar Cavalgada das Valquírias, de Wagner, em um nível ensurdecedor. Raios cruzaram o céu, um vento inacreditável começou a varrer as ruas lá fora, e, por aquela lógica que só o Mundo sabia ter, o velho pulgueiro continuou em pé.

As poucas pessoas no bar se jogaram no chão em pânico, e o garçom olhava boquiaberto pela porta.

Então veio um silêncio inacreditável. Som de passos. E a porta se abriu.

- Você...chegou ! - O homem de social levantou rapidamente e abraçou o homem que havia acabado de entrar.

O homem confiante foi o segundo a se levantar :

- Yaaaaahooooooooo ! Eu realmente gosto desse cara ! Você parecia o próprio Angus Young abrindo o grande show do ano !

O homem mal encarado apenas se levantou, sério, e disse :

- É bom te ter de volta.

Ele não sabia ainda como fora parar naquele bar. Estava sonhando com alguma coisa relativa a um jogo de futebol importante, no qual ele estava na arquibancada torcendo, e então fora parar numa rua escura e fétida, e algo parecia chamá-lo para entrar no bar.

- Sente-se, por favor. - Pediu o homem vestido de social.

Notou que estava vestindo a roupa que estava antes de dormir. Calça jeans, uma camisa de flanela xadrez e um tênis folgado.

- Então...sonho legal o dessa noite.

- Diego, você precisa nos ouvir. Rápido. Houve uma grande explosão no Mundo a duas semanas atrás. O que aconteceu ?

- A duas semanas atrás ? Bem, houve uma grande merda, minha avó morreu, mas...explosão ? Mundo ? 

Os três homens se entreolharam e se voltaram para ele com um olhar pesaroso.

- Sentimos muito. Acredite, mais do que você imagina.

- Não, tudo bem, caras. Ela está num lugar melhor.

- Exato. Mas nós, digo, você, não. Precisamos corrigir as coisas por aqui.

- Eu preciso ? Isso é só um sonho. Vou acordar com o despertador e fim. Tipo um coito interrompido.

- Hahaha ! Eu disse, eu gosto desse cara. Não é a toa que ele tem muito de mim - disse o homem confiante.

- Não. - interveio o homem mal encarado.

- ...Ahn  ?

O homem de social interveio :

- Diego, o Mundo que você está agora não é um simples sonho. É a materialização do que é você. Sua mente, sua alma.

Diego os encarou com uma cara típica de quem ouvira uma piada muito ruim.

- Cara, é o seguinte. Doei sangue hoje, o médico disse pra eu não beber, eu não bebi, então não sei porquê estou delirando e...

- Você não está delirando. - disse em tom ríspido o homem mal encarado - O Mundo é sua mente. E ele está se consumindo, desmoronando, pois suas virtudes tem sido negligenciadas e o caos tem reinado por aqui. Você irá nos ouvir, querendo ou não, pois ouvir a qualquer um nessa mesa é ouvir a si mesmo.

- Pode nos chamar de Mestre Miyagi, e você mesmo de Diego-San - satirizou o homem confiante.

O homem mal encarado quebrou a garrafa na mesa e gritou ao homem confiante :

- Cala a boca, porra !

Dessa vez, mais do que na chegada dele, o garçom havia sujado as cuecas de uma cor suspeita.

- Olha, caras...eu não sou esquizofrênico. Parem com essa porra, vou acordar e fim do sonho. Adeus, até mais, arrivederci. - disse ele, se levantando e virando as costas em direção á porta.

- Diego, nós somos você.

Ele estancou e virou. Olhou, dessa vez, com calma a cada rosto naquela mesa. Seu coração parou no tempo.

Cada um dos três era muito próximo a ele fisicamente, com diferenças pontuais de cada um. Um parecia mais jovial, o outro mais compenetrado, e o outro terrivelmente sério. Eram como versões de universos paralelos. Vidas que ele teria se tivesse feito outras escolhas, talvez.

O homem de social se levantou e disse :

- Somos três partes de você. Estamos separados, essa é uma das consequências do colapso do Mundo. Você perdeu partes de sua alma, e se sente mal, perdido, sabemos disso porquê também sentimos. E precisamos voltar aos poucos a nos unir com você. Só assim o fim pode ser evitado.

- Saca quando você andava como um pavão, falava as coisas certas pras garotas certas e era elogiado por sua pegada ? Então, garanhão, era eu na parada. E sei que você sente falta da minha força - disse o homem confiante. Parecia muito os personagens engraçados e pegadores dos filmes de hollywoods, preocupados demais com o próprio ego e com uma lista extensa de mulheres apaixonadas.

- E eu estava lá quando você atingia resultados acima da média nos estudos e no trabalho, Diego - disse o homem de social.

Então o homem mal encarado levantou e disse :

- E eu sou o seu caráter e a sua honra. Pareço duro, mas não há lealdade maior nem virtude tão imbatível como a que eu agrego á sua alma, irmão. E estou aqui por você.

- Eu também. - disse o homem de social.

- Já estou com saudades do Matrix. Claro que eu também - disse o homem confiante.

Aquilo parecia surreal e fruto de alguém que fumara maconha e bebido vodka junto. Mas, ao mesmo tempo, fazia todo o sentido. Podia lembrar da sensação e da presença deles em si mesmo nas situações descritas. Eles eram ele, e ele era eles.

- Então...como posso unir vocês á mim ? Digo...como consigo juntar os pedaços de minha alma ?

Os três novamente ficaram em silêncio. O homem mal encarado disse :

- Não sabemos. Só você tem acesso ao mundo real. E só você pode achar a resposta.

Ótimo. Estava legal e blockbuster demais pra ser tão fácil e verdadeiro.

- Certo. E como vou saber se estou no caminho certo ?

- Quando nos sentir cada vez mais em você. Mais seguro. Mais honrado. Mais forte. Mais confiante. Quando voltar a liderar por ideal, quando voltar a escrever a própria história - disse o homem mal encarado

- E quando estiver mais bonito também - disse o homem confiante.

Ele riu. Não pode evitar.

- Certo. Eu ainda acho essa história toda absurda, mas algo me diz que devo acreditar em vocês. Nos vemos em breve, eu espero.

Se virou e foi até a porta.

- Diego - disse o homem mal encarado

-...sim ?

- Uma vez, um certo homem disse que ia mudar o mundo. Eu acredito nele.

Ele sorriu. Continuou até sair pela porta, e então notou um outdoor gigante no final da rua, no alto de um prédio :

Havia uma mulher segurando uma Coca-Cola, como nos anúncios dos anos 30, e a frase :

"O amor está em toda a parte da natureza, como emoção, mas principalmente, como recompensa".

Gravou a dica na cabeça.


Acordou.



AD INFINITUMN















1 comentários:

Oissac disse...

Simplesmente incrível cara!

Ótimo texto, ótima narração, ótimos personagens (Matrix é pros fracos).

Parabéns cara, espero realmente que seu personagem consigo unir novamente seus alter-egos.

E eu ainda acredito que você vai mudar o mundo!!!