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terça-feira, 11 de março de 2014

House of The Rising Sun





Foi em uma manhã.

Havia atravessado a porta que sempre se abria nos sonhos, e dessa vez, havia parado dentro de um lugar com teto alto e paredes de mármore branco.

Desceu a escadaria, devagar, como se não quisesse acordar alguém. Dobrou a primeira pilastra á esquerda, e então se viu num átrio gigantesco, com quadros enormes de generais em suas paredes e lustres de até três metros, pendendo de um teto pintado com a imagem colossal de uma mulher segurando uma bandeira esfarrapada, em uma posição de glória e poder. Havia uma inscrição em cirílico em torno de sua cabeça, como uma aura. Não sabia ler em cirílico.

As janelas que se aproximavam do fim do átrio estavam tapadas por cortinas e pedaços grossos de tábua.

As mais próximas da porta grossa de madeira no começo estavam livres, deixando entrar uma luz solar tímida e fraca, que iluminava o chão cheio de rachaduras. Ele notou que havia entrado ali por uma porta lateral e quase escondida.

O lugar era imponente, imperativo, parecia deter um espírito próprio. Mas era vazio, como se a vida há muito o tivesse deixado.

Sentiu o cheiro de fumaça. Olhou pelas janelas novamente, e viu fumaça preta subindo.

Tóxica.

Tentou empurrar uma das portas de madeira, e com dificuldade, conseguiu mover uma delas o suficiente pra sair. As portas tinham quase seis metros de altura, e logo se revelaram como a parte final de um pórtico em estilo gótico com a imagem entalhada de várias crianças em sua extensão.

Deslizou para fora, e o que viu foi uma praça extremamente larga, em que muito lhe lembrava a Praça de São Francisco, no Vaticano.

No centro, um tótem de ao menos oito andares, com um anjo dourado em seu cume, segurando os louros da vitória e com o dedo indicador apontado pro céu.

Haviam carros queimados e destroçados, além de escombros, por toda a parte. Podia ver agora marcas de tiros e riscos de algum tipo de arma branca nas pilastras externas do palacete.

Crateras habitavam aonde antes havia um mosaico desenhado no chão, e o vento trazia um cheiro acre e forte, entorpecente.

Avançou vários metros até sair daquele lugar, e ali, no último pedaço de praça, viu o que havia depois.

Um campo enorme de lírios. O sol se colocava no horizonte, e aquela era uma cena linda de se ver.

Sentiu uma paz imensa tomar seu coração. Foi assim durante segundos.

E então, houve trevas.

Primeiro, o som das artilharias.

Depois, o grito ensurdecedor de mil homens, divididos em lados opostos, munidos desde de clavas até fuzis de assalto, correndo ao encontro fatal uns dos outros. Corriam pelo campo, pisoteavam o que restava dele, e seus olhos traziam a fúria insana de quem já não pensa, não sente, apenas mata e morre.

Viu, aterrorizado, um homem forte e de porte maciço esmagar o crânio do adversário ao tempo em que outro o acertava com uma lança pelas costas. Viu homens comemorando cada golpe, e viu homens implorando por misericórdia divina.

Alguns chamavam pela mãe. Outros, se preocupavam em reter o sangue do membro dilacerado.

Guerra.

Tão rápido quanto começou, ali havia terminado. Após determinados minutos, poucos restavam vivos. A brutalidade havia sido imensa, e os poucos que sobreviveram pareciam determinados a correr de volta de onde vieram.

A visão (e audição, e o tato, e o cheiro, e a consciência !) do sofrimento daquelas pessoas, daquele lugar, daquele mundo era insuportável.

Foi então que ela veio. Não notou de onde, ou quando estava ali.

O tempo parecia ter deixado de existir. Seus olhos eram uma mistura da cor do mel com o fogo mais ardente que já havia visto. Sua pele era alva á um ponto inacreditável. Vestia apenas uma espécie de sobretudo com capuz, que lhe cobria quase todo o corpo. E seu rosto...difícil determinar mulher mais bela em sua memória.

Ela se ajoelhou perante um soldado agonizante, e segurou sua mão. Um segundo depois, ele já não se mexia mais.

Se aproximou lentamente, olhando fixamente nos olhos dele.

Eis ali uma coisa que no qual ele era bom. Encarar, desafiar. Já havia ganho duelos e debates assim, e já havia assustado muita gente sem querer, também. Mas com ela, não.

Não havia confiança, ou fé, ou vibração. Havia apenas um frio, uma sensação imensurável de impotência.

Humano. Demasiado humano.

Quem era ela, afinal ?

- Olá. Sei que não é uma hora das melhores para nos conhecermos, mas geralmente, é difícil eu aparecer em bons momentos.

Ela inclinou a mão esquerda para tocá-lo, e se lembrando do que ocorrera com o soldado, ele imediatamente se desviou.

Ela sorriu.

- Não se preocupe. Só acontece quando a sua hora chega.

- Que lugar é esse ?

A dama de preto inclinou o pescoço e o fuzilou com o olhar. Por Deus, se aquilo era a Morte, que diferença pros esqueletos das pinturas medievais !

- Sua mente. Minha mente. Nossa mente. Inconsciente coletivo.

- E...e isso é real ? É o futuro ?

Ela riu novamente. Era um riso gostoso, esperto, e a forma como o atraía o deixava terrivelmente confuso. Quem diabos se atrairia pela morte, assim ?!

- Já ocorreu algo na sua vida que você não tivesse contribuído diretamente, meu caro ?

- Não.

- Pois então.

- Não irei causar uma guerra.

- Não. Mas não existe só você no mundo.

- E o que quer que eu faça a respeito ?

A Morte se sentou em um bloco de concreto caído, contemplou o sol que restava e olhou novamente, dessa vez completamente séria.

E esse era ele. Sendo encarado pela Morte totalmente séria depois de parar no meio do nada e ver uma batalha campal. A galera do bar não ia acreditar.

Se ele sobrevivesse.

- Você já foi melhor que isso.

- Obrigado. Pague uma sessão de terapia por "isso" depois.

- Hm. Quando a Morte lhe dá um conselho, você deve parar e escutar, garoto.

- Senão você me mata ?

Não conseguia acreditar que tinha feito uma piada daquele nível. Muitas pessoas entravam em desespero ao ver a morte chegando. Ele fazia piadas.

- Já matei gente por piadas melhores que essa.

- Mas não é minha hora.

- Não. Há alguém lá em cima, e dentro de Você, que precisa de ti, e de várias outras pessoas, para o que está por vir.

- E nós devemos evitar cenas como a que acabei de graciosamente assistir.

- Não se evita, garoto. Se decide por uma outra realidade. É a diferença que você faz quando opta por sair do emprego que odeia e fazer o que ama, ou largar o orgulho social e falar com estranhos até fazer uma nova amizade. - Ela fez uma pausa, ajeitou o cabelo pra trás, respirou e continuou. A Morte era vaidosa. Justo. - Pessoas reclamam de tudo. Dizem que o seu país é corrupto, mas se permitem ser corruptíveis. Alegam solidão, mas não toleram o outro. Reclamam da vida, mas não querem enxergar nem além da esquina.


A Morte se levantou, e seus olhos se acenderam, e o vento soprou forte em tudo que havia ali. Sua voz ribombou como o som de um milhão de vozes, o mais poderoso coral :

- Não enxergam a verdade suprema que a Criação lhes deu : Sois Deuses ! Deuses ! A cada segundo, a cada nota musical entoada no cenário de sua história, tu decides quem és ! Qual prêmio e castigo ter ! Tu, e mais ninguém ! Não duvides nunca de tua capacidade de mover montanhas ! Ou de transformar a guerra em paz e evolução ! Que seja !

Ela então se acalmou e sentou. Ele, por sua vez, sentia o coração na boca e as pernas tremerem.

Notavelmente, ele acreditava firmemente há muito tempo no que acabara de ouvir. Na prática, quase não o aplicava.

- Entenda uma coisa, garoto : Pareço poderosa, mas não sou mais do que um instrumento. Só apareço quando chamam meu nome. E muitos de vocês tem chamado.

Ela aplicou o capuz na cabeça, e se encaminhou até aonde o campo era mais volumoso.

- Você já vai ?

A Morte parou, olhou, e sorriu daquela forma novamente.

- Eu sempre estou aqui, garoto. Mas não pra você. Não agora.

E ela piscou. E ele entendeu que até a Morte poderia fazê-lo se sentir mais vivo.

Mas quando virou as costas para o campo, não havia mais paz em sua alma.

O Mundo parecia precisar pensar melhor suas decisões mais recentes. As mais pequenas, inclusive. O ódio nasce no cotidiano até parar nas grandes desgraças.

Era preciso lutar por isso. Por mais gentileza e amor real ao próximo, talvez.

Lutar. Eis a mensagem que deveria passar.

A Morte nunca erra.



AD INFINITUMN

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