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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Libertas Quae Sera Tamen



Minha jaqueta de couro já não bate mais o comprimento do ombro. Mas eu gosto da forma como seu couro velho e batido encaixa nos meus ombros. A bolsa é pesada, mas eu não a sinto.

Talvez tivesse sentido mais nos mil trecentos e sessenta sete dias anteriores. Mas não agora.

Saio do prédio, piso na calçada. O ar frio do outono enche os pulmões e meus olhos refletem as luzes da Paulista.

Coloco meu Sennheiser MX270 nos ouvidos. Josh Homme saúda o meu espírito :


"Shock me awake, tear me apart,
Pinned like a note in a hospital gown,
Deeper I sleep, further down,
The rabbit hole never to be found...


It's only falling in love because you hit the ground"




Eu dou cada passo sabendo que aquele é o único passo naquele instante da minha vida que eu poderia dar. 

Poderia ser uma volta á mais pra casa. Um dia á mais na vida do homem médio. Um porre á mais na próxima sarjeta. Uma bala perdida no escuro da noite.

Mas não era. Aquele era o dia.

As linhas do baixo parecem ditar meu coração. Rápido e indiferente, eu sou aquele que devora metros e segundos em direção ao meu desejo. Meu destino. Meu. Meu, e de mais ninguém. Eu escolhi. Eu.

"It’s how you look, not how you feel,
The city of glass, with no heart…
If I had a tail, I’d own the night
If I had a tail, I’d swat the flies...Yeah, oh oh, oh oh, oh, oh"

Compro uma breja. Gelada, levemente amarga, bebo metade de primeira. O álcool bate no sangue e ali você sabe que alguma felicidade vai existir. Nunca, antes, na existência, me senti tão certo e poderoso sobre algo. Nunca, antes, na existência, parecia existir tanto por mim mesmo.

Eu era o homem na calçada. Da cerveja na mão e jaqueta nas costas. No one cares a fuck about that. E isso me deixa tão completo. Tão vivo. Livre.

É. Liberdade. Era isso.

E nas últimas 72 horas, eu havia amado com tanta pressa, e odiado com tanta calma, e vivido 24 anos em 24 minutos, ao menos assim me parecia quando a barba rala era vislumbrada em um reflexo, ao mesmo tempo em que por dentro pulsava uma única sensação de glória mortal, humana, temporária porém tão rara, valiosa, suprema.

Morrendo um pouco á cada dia pra viver um pouco mais á cada segundo. Não havia cerimônia em pagar o preço.

Não. Ter alguém que não gosta de você pelo que você pensa é maravilhoso. Arriscar ir tão fundo numa garota até o ponto em que ela deixa te de dar corda e te dá uma cortada, é maravilhoso também.

Pensamos que vitória e derrota é o resultado final, mas não. É cada instante. É o caminho, e não a parada final.

Afinal, todos morremos. E eu sou só um cara andando na avenida, escutando seu som, sorrindo pra si mesmo.

Engraçado como até mesmo nas vezes em que a vida insiste em bater, eu dou risada como o filho que já cresceu demais e não sente medo nem dor das pancadas da mãe.

Engraçado como eu desenvolvi uma frieza tão nítida e controlada ao mesmo tempo em que não perdi meu calor humano nem me abstenho de usá-lo diariamente.

Engraçado como aprendi a bater. Odiar, também. E não me sinto mal por isso, nem me tornei alguém pior. Apenas mais completo. Melhor. Mais inteiro. Mais humano.

Não matei ninguém, ao menos. Ainda. Talvez só meus monstros. Ah, como eu gostei de matá-los, todos eles, e vê-los seu sangue - meu sangue, pois os monstros são meus - escorrer pra fora de mim. Adeus.

Parei no semáforo e o homem de rua, da barba desgrenhada e do rosto sujo, virou pra mim e disse algo. 

Não ouvi.

Tirei os fones, e não esperei ele repetir.

- É uma boa noite para um homem livre viver, senhor. Viva a sua o melhor que você puder, pois livre você já é.

E ele abriu um sorriso, cheio dos dentes faltantes e amarelados. Mas ele sorriu. E quando atravessei, olhei pra trás colocando o fone de ouvido, ainda em tempo de ouvir mais um trecho...

"There ain’t no use in crying,
It doesn't change anything,
So baby, what good does it do ?!"



...e vê-lo me fitar com aquele brilho no olhar, estático, no meio da cidade que não enxerga seus membros mais valiosos, o eterno deserto de pedra e paixão que São Paulo é. E eu a amo, Deus sabe que sim.

Eu conhecia aquele brilho. Oras, senhores, não mendigaria. Não se trata disso. Centelhas divinas não enxergam classes sociais. Elas existem no momento em que você vive a sua verdade.

E eis ali dois homens verdadeiros naquele instante, que se cruzaram e se reconheceram. Oh, merda, a cerveja está acabando.

E dali vinte e quatro horas (em mais uma daquelas que duram vinte quatro anos em vinte quatro segundos), eu estaria bebendo com amigos e descendo pela boemia da capital.

E dali vinte e quatro momentos, eu estaria cruzando os céus e conquistando o meu pedaço do lugar aonde tudo continua lindo, de fevereiro e março, quarenta graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos.

E dali vinte e quatro ideias, eu estaria em outra fronteira, aonde o rio de prata banha o continente e dizem que a carne é de tão bom grado. Aonde o velho encontra o novo e onde o tempo parece parar.

E dali vinte e quatro sorrisos, estaria naquele lugar, aonde os prédios são tão belos quanto as mulheres, o vinho é intenso e púrpura, a música é tão única e até o frio aquece.

Esse é o dia, senhores. Esse é o dia, señoritas.

O dia em que, novamente, me engrandeci e sofri, lutei e também perdi. Mas dessa vez, tudo foi tão incrível.

Esse é o dia em que voltei á ser um homem livre.

E continuo caminhando. Pra achar a mim mesmo, cada vez mais.

Um dia, serei eu a cruzar o olhar com o seu. Espero te ver livre também.



AD INIFINITUMN


1 comentários:

Oissac disse...

Parabéns pelo post irmão, expressivo e libertador!
Boa viagem!