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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Mate um sonho, ganhe uma vida.



"Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a vida ?"

Milan Kundera - A Insustentável Leveza do Ser


Era um dia entre nuvens e abafado.

O fim de tarde jazia entre as baforadas dos escapamentos de carros e o movimento apressado de quem queria chegar em casa.

Dobrei a esquina da avenida e entrei na rua atrás da estação, esta já rareando de qualquer presença humana tranquilizadora.

Por vezes, prostitutas e traficantes de baixo calibre dividiam suas quadras, e como tal quem saia do expediente evitava o lugar. Por sorte, isso fazia o ônibus pra casa passar inacreditavelmente vazio ao final dela, antes de lotar na sempre apinhada (e teoricamente segura) central municipal.

Eu era um cara que apreciava lugares vazios, mais do que qualquer receio de ser vilipendiado em via pública por algum noia descompensado.

O sentimento anti-social vencendo o instinto de sobrevivência urbana. Coisas que São Paulo faz por você.

Vejo uma pichação no muro branco e cheio de buracos de bala. "Deus não habita em templos".

Também não deve habitar nessa rua imunda.

Noto uma cápsula deflagrada e achatada caída no meio fio.

Naquela manhã, eu havia ouvido uma notícia no rádio.

Um tiroteio ocorrera no subúrbio. Um grupo de extermínio decidira executar jovens numa praça frequentada por usuários de cocaína.

O Kadett varou a esquina cantando pneu, três encapuzados desceram e descarregaram suas submetralhadoras por todo o lugar.

Um fedelho levou quinze tiros na perna e ainda sobrevivera pra contar a história. Provável que não durasse mais do que algumas horas no hospital.

Os outros morreram.

Mais do que uma história rotineira, houve uma fatalidade á mais.

Uma das balas foi em direção á um barraco logo ali, numa rua adjacente á praça.

Dentre tantos quilômetros de lugar que a bala poderia atingir, ela decidiu correr veloz e furiosa na direção de um bebê de onze meses.

Se fosse feita de alvenaria, como o muro do Deus-que-não-habita-templos, na rua das putas, a bala provavelmente não teria passado. Se passasse, teria tido a trajetória desviada o suficiente pra matar a televisão e não a criança.

Mas não. Era uma chapa fina de madeira inflamável, a bala seguiu o destino traçado e o xodó da família agora era uma massa disforme e sangrenta.

Deus não habita em templos. Deus não habita em barracos.

Tudo isso por uma questão banal. Um tiro dado pelos motivos errados, na direção errada, de uma casa errada, atinge a pessoa errada, BUM, uma injustiça terrível, dor, dor, dor, sofrimento, notícia na TV.

E você acreditando em universo conspirando pelo seu sucesso depois de ter visto aquele documentário sensacional (mentalize e o universo trará - oh sim, mentalizando !).

Em um mundo aonde pais recolhem os miolos dos filhos no café da manhã, você ainda se surpreende e revolta porque babacas são mais amados do que caras legais e seu nome não apareceu na lista do vestibular após alguns meses de sacrifício e renúncia á seus desejos mais íntimos.

Faltam duas quadras, uma senhora de tolerância abre o casaco e mostra a lingerie usada.

"Trinta reais por um final de dia feliz, querido."

Eu ignoro.

"Gosto quando ignora. Os mais difíceis atraem mais mulheres"

Respondo dessa vez.

"É verdade, senhora".

Ela solta uma gargalhada de som arranhado, entre dentes faltantes numa boca escancarada.

"Vai com Deus, meu bem !"

Deus não habita na rua das putas, senhora. Aviso ele quando o ver.

Retomo o pensamento sobre a fatalidade banal que matou o bebê.

Nietzche dizia que o mundo do ideal proposto por Platão e sua escola era um câncer que havia causado um estrago imensurável na humanidade.

O realizável tem limite, a imaginação não.

Viver em torno do que sua mente produz (e é induzida a produzir) como ideal é como correr atrás do rabo eternamente.

Somos cachorros em busca de satisfação além da trepada no cio.

Depois de tantas porradas e cicatrizes, eu havia ficado niilista pra caralho.

Vendi minha alma pro diabo por níquel algum. Entreguei os pontos por perder o tesão em viver nesse grande show psicótico que chamam de mundo.

E foi ali, quando eu esperava o inferno da eternidade sem sentido, que encontrei felicidade.

Um caralho de reação inesperada, mas admitir que o mundo era um lugar sujo, cruel, filho-da-puta, sem lógica e mérito algum e que nos permitia pequenos intervalos de realização me fez me sentir mais inteiro, realizado e contente por pequenas coisas do que nunca.

Passei á viver o momento, á notar a beleza de cada coisa por menor que fosse. A felicidade já não vinha apenas nas grandes vitórias que levavam semanas pra acontecer.

Aquele louco do Nietzche era mesmo um gênio.

Afinal de contas, quando você tem consciência de que a justiça é falha e você pode se foder em níveis estratosféricos independente do que faça ou do Deus acima de nós (embora você possa prevenir isso para porcentagens menores de risco), seus problemas de primeiro mundo deixam de existir e você larga suas mediocridades diárias para se entregar á uma existência construtiva e verdadeiramente poderosa, no qual o propósito é ser além, sem amarras inúteis que sufocam sua vontade de potência, sua grandiosidade.

Penso que a vida na civilização é uma evolução constante na história. No meio de todo esse mar de bosta, ainda assim, somos a geração mais abençoada em todos os sentidos. A humanidade e o mundo sempre foram piores do que atualmente são, tendendo a aumentar essa piora conforme você se afasta pra trás na história linear.

Porém, nunca houve tanto consumo de remédios tarja preta, livros sobre alegria, terapeutas, igrejas que prometem redenção e todo o resto que pareça uma boia salva vidas.

Provavelmente porque nunca se falou tanto em como "você merece o melhor" ou "você é especial".

Você é especial. Mas não pra vida. Pra ela, você é um homo sapiens á mais, um número. Ela vai pegar pesado com você em algum momento, independente da sua cor, credo, posição social, caráter ou volume de doações pra Cruz Vermelha.

E se você for bem assim, pés no chão e realista de que isso é o destino mesmo, acontece com todo mundo mais cedo ou mais tarde e foda-se (ao menos vou apanhar de pé e sorrindo, sua vadia), bem, tu vai até aguentar bem e nem vai levar muito pra frente toda a consequência dolorosa da infelicidade que lhe acometeu naquele instante. Vai aprender com ela.

Mas use esse papo de que você é especial, aguarde ansiosamente que ela lhe trate como sua adorada mãe lhe trataria, e todos nós sabemos que seu rabo gordo será o próximo á entrar na fila do psiquiatra.

Lembro do personagem Comediante, de 'Watchmen'. Um leitor incauto pode achar que esse anti-herói é um vilão sádico que merece morrer, mas quem conhece mais á fundo essa maravilhosa HQ sabe que Comediante nada mais é do que um cara que foi á guerra do Vietnã, viu que o mundo em vários momentos era um puta circo cheio de coisas erradas e ao ter contato com o sofrimento extremo, ficou tão deprimido e desencantado que passou á encarar TUDO como uma piada de mau gosto, não levando nada a sério - nem mesmo os valores morais e de certo e errado. Por isso o apelido de 'comediante' e o famoso broche de "Sorria".

Exatamente o mesmo mundo aonde você fica putinho porque pisaram no seu pé no trem mas ignora que um transeunte (que poderia ser você) foi metralhado naquela mesma noite.

Não digo que eu vou sair atirando em pessoas nem que você deve se tornar um sacana.

Não, porra.

Apenas note a imensidão de tudo á sua volta, e o seu tamanho (e muitas vezes, a sua impotência) perante elas.Se a idade do mundo fosse medida num calendário de 365 dias, nossa passagem por ele seria resumida nos últimos 14 segundos do dia 31/12.

Sendo que este mundo está inserido num sistema solar com alguns planetas 20 vezes maiores do que o nosso.

E o nosso sistema está inserido numa galáxia com milhares de estrelas maiores do que nosso sistema inteiro.

E nossa galáxia está inserida num complexo de outras galáxias muito maiores.

E o complexo inserido numa intríseca rede de complexos.

Acredite em mim, quando ando nesta rua deserta e decadente e digo que eu, você, nossos problemas, não são porra nenhuma.

Pessoas podem achar esse discurso horroroso. Babaquice.

Experimente usá-lo na prática.

Nem mesmo o mal (e sua definição relativa) continuam á ter qualquer incentivo ou sentido quando você vive aqui, no hoje. Pois o ato (qualquer um) de violência, quando não traz um retorno imediato, se torna vago e perde qualquer prazer á quem o perpetra.

Espancar quem te roubou o celular ou arregaçou o seu carro pareceria maravilhoso enquanto ele implorasse pra você parar ou resistisse, ao mesmo tempo em que você estivesse espumando palavras de ódio e justiça moral até se acalmar.

Mas se ele simplesmente ficasse indiferente e apanhasse até a morte em silêncio, você se sentiria um monstro. Ou, no mínimo, o ato em si iria perder força com o tempo.

Por viver nessa cidade, de tiros e traficantes, lotações e concorrências, aprendi a ver no outro um adversário.

Quando tirei o valor supérfluo de tudo, o outro virou apenas o outro. Não desejo seu mal, suas coisas, sua derrota.

O que preciso está aqui. Se não está agora, pode estar algum dia, me esforçando e trabalhando nessa direção.

E então, andando nessa rua de putas (que não condeno), de traficantes (que servem a ilusão química pra quem já não sustenta a ilusão mental sozinho), de vazio urbano, mesmo aqui, num lugar tão destruído pelo tempo, eu sinto um ínfimo prazer existencial á cada passo dado. No sol que se põe, no vento que bate.

Cada dia, cada hora, cada segundo é como se fosse o último. Mas não há desespero, há apenas calma, gratidão e uma beleza em meio ao caos.

Deus não vive em templos. Deus não vive na rua das putas.

Deus vive em nós. E quão bom tem sido encontrá-lo.

Dobrei a esquina final e peguei o ônibus.

Outro dia igual pra muitos. Mas não pra mim.



AD INFINITUMN







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